Desdemocratização: a fragilização dos direitos processuais diante o recrudescimento do autoritarismo
Por Claudia Maria Dadico –
É corrente a afirmação de que o processo judicial é o “microcosmo do Estado de Direito”.
Rui Cunha Martins nos ensina: “dizer que o processo é o microcosmo do Estado de Direito” significa, ao menos, duas coisas: (1) que o processo é, ou deve ser, a expressão do Estado de Direito, daquilo que ele é ou deveria ser e (2) o que acontece com o Estado de Direito afeta diretamente o processo.
Esta segunda dimensão da relação entre processo e Estado de Direito é a que mais preocupa.
As primeiras décadas do século XXI demonstram que as crises das democracias liberais ganharam novas roupagens. Não mais se trata de contextos de rupturas explícitas, com tanques nas ruas e tomada violenta do poder por força das armas. Trata-se de um processo de desgaste das instituições democráticas “por dentro”, em que passo a passo, suas funcionalidades vão se distorcendo, suas práticas vão se orientando para a naturalização de experiências autoritárias, seus integrantes vão se habituando a naturalizar “deslizes”, tomando decisões que, em sua visão, tratam-se de pequenas concessões para argumentos como a utilidade, a produtividade, a celeridade e, em algumas vezes, o combate a males sociais, tais como o aumento da criminalidade, a corrupção, a moralidade.
Ou seja, a soma de concessões a práticas autoritárias encontra terreno fértil em instituições sintonizadas “com as políticas neoliberais, a manutenção de uma segurança pública militarizada (…)” e “discursos de legitimação do sistema punitivo através de cruzadas morais”. Miudezas, pequenas violências, interpretações questionáveis, tudo isso repercute de forma ainda mais dramática em contextos de escalada da violência política, como os que se têm verificado em vários países, nos quais uma “cultura antidemocrática” vem sendo cuidadosamente construída.
O lento processo de erosão das instituições democráticas ganha potência e aceleração no atual contexto de radicalização dos discursos e práticas autoritárias, quando se disseminam na sociedade atos de ameaça e intimidação a agentes públicos, notadamente a juízes.
Os exemplos se multiplicam: Fujimori atacou juízes “não cooperativos”, chamando-os de “lacaios e patifes”; Silvio Berlusconi atacou juízes que decidiam contra seu governo chamando-os de “comunistas”; Donald Trump atacou o juiz James Robart, do Nono Circuito da Corte de Apelação quando este suspendeu o veto migratório decretado pela Presidência. Trump referiu-se ao magistrado como “pretenso juiz, que no fundo tira do nosso país a aplicação da lei”. É do conhecimento geral os ataques que os Ministros da Suprema Corte brasileira, em especial os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Roberto Barroso, têm sofrido por parte do Presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores.
Tais ataques à independência do Judiciário fazem parte das estratégias de vários governos, como demonstra os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em seu livro “Como as Democracias morrem”. A estratégia de ataques, ameaças e intimidação dos integrantes das instituições democráticas que agem com independência faz parte do arsenal destas forças políticas que têm se caracterizado por: 1) rejeição das regras democráticas ou um compromisso muito fraco com elas; 2) a negação da legitimidade dos oponentes políticos; 3) tolerância ou encorajamento à violência; 4) propensão a restringir as liberdades civis dos oponentes, inclusive a mídia.
Os ataques a Ministros de Tribunais de cúpula que, supostamente, são os agentes que detém as posições de maior poder na estrutura do Poder Judiciário, repercutem de forma orgânica por toda sua tessitura. Seria possível até cogitar de um “efeito silenciador” que vai se disseminando pelos diversos graus do poder judiciário. Apesar de ser inerente ao papel do juiz não se deixar guiar pelo “clamor público” e saber que suas decisões, nem sempre, serão bem aceitas pelos detentores dos interesses em conflito nos processos judiciais, ataques em massa, de grande repercussão e de maior virulência, podem efetivamente alcançar seu propósito de colocar “as coisas em seu lugar”, na perspectiva dos ofensores e estimular, ainda mais, práticas decisórias que se amoldem aos padrões autoritários.
Assim, de volta à afirmação inicial de Rui Cunha Martins, no contexto de intensificação do processo de erosão das instituições democráticas, acelerado pela escalada autoritária, é de se esperar não apenas pequenas concessões, mas verdadeiros retrocessos, cada vez maiores, no campo do devido processo legal. Por isso é necessária a adoção de uma posição de vigilância e defesa intransigente dos avanços já alcançados.
Talvez um dos exemplos mais eloquentes dos reflexos da “desdemocratização” no processo penal seja a audiência de custódia.
O direito à apresentação imediata do preso à autoridade judiciária já era contemplado no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966 e na Convenção Americana dos Direitos Humanos, de 1969. Em que pese a relevância dos referidos tratados, sua promulgação no Brasil somente veio a ocorrer em 1992, com os Decretos 592 e 678, respectivamente. Portanto, o direito à apresentação imediata do preso ao juiz já se encontrava positivado, no ordenamento normativo brasileiro, em caráter supralegal, ao menos desde 1992.
No entanto, foi apenas em 2015, com a edição da Resolução nº 213 pelo Conselho Nacional de Justiça que a obrigatoriedade da audiência de custódia passou a ser adotada e debatida pelo sistema de justiça.
O avanço, na direção de um processo penal afinado com os parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos, não foi sem percalços, chegando mesmo a ser questionado judicialmente por uma suposta ausência de base normativa, como se as obrigações contraídas pelo Brasil ao firmar Tratados Internacionais de Direitos Humanos já incorporados ao direito nacional nada representassem sem sua confirmação por legislação ordinária.
As resistências deveriam dissipar-se de uma vez por todas com a edição da Lei nº 13.964/2019 que, finalmente, inseriu a audiência de custódia no texto do Código de Processo Penal.
Não é preciso reiterar o avanço representado pela realização de audiências de custódia, não apenas como medida auxiliar à complexa problemática do superencarceramento, mas sobretudo na atuação do Poder Judiciário no combate à tortura.
No entanto, em que pese sua extrema relevância e sua natureza jurídica de instrumento de proteção de direitos humanos, as repercussões da “desdemocratização” do Estado de Direito no âmbito do direito processual apresentam nas audiências de custódia uma de suas mais emblemáticas materializações.
Veja-se, neste sentido, o movimento iniciado no seio das entidades corporativas de juízes para permitir sua realização por videoconferências. O avanço representado pela audiência de custódia na modalidade presencial, ou seja, com a presença física da pessoa presa, diante de um juiz fisicamente presente na sala de audiência, sem a presença dos agentes do Estado responsáveis pela captura durante o depoimento, cai totalmente por terra com a realização do ato por videoconferência.
A fragilização do instituto também vai se sedimentando com práticas, aparentemente “inocentes”, tais como a “renúncia” da pessoa presa ao exame de corpo de delito, registrada nos depoimentos prestados por ocasião da lavratura do flagrante, muitas vezes corroborada pelos defensores da pessoa custodiada. A homologação do flagrante, nessas condições, demonstra a facilidade com que o Poder Judiciário realiza concessões a valores como o congestionamento dos órgãos encarregados dos exames de corpo de delito, o produtivismo, a celeridade, a utilidade, e outros, em detrimento de mecanismos de proteção de direitos humanos positivados em Tratados Internacionais.
Rubens Casara adverte que “a cada vez que um direito fundamental é violado ou relativizado, caminha-se um passo rumo ao autoritarismo”.
Num país em que se transige que um instrumento de controle jurisdicional da tortura, como a audiência de custódia, ocorra por videoconferência, ou seja, sem o contato visual imediato com o corpo do preso, sem a possibilidade de que o preso possa dirigir-se ao juiz com privacidade assegurada, e, finalmente, sem a obrigatoriedade até mesmo do exame de corpo de delito, bem se vê que o processo judicial é, de fato, o microcosmo do Estado de Direito.
Mas de um Estado de Direito meramente formal, esvaziado de sentido, destituído da substância dos valores democráticos.
Um triste sintoma do processo de “desdemocratização” que assola o país e suas instituições. Um termômetro a indicar que a febre produzida pelo vírus do autoritarismo só faz subir. Não são necessárias grandes manifestações populares, carreatas, motociatas e atos antidemocráticos para se medir a tendência de alta de sua temperatura. Num ambiente de omissões e complacência com práticas autoritárias cotidianas, o vírus produz seus resultados nocivos com a ajuda do próprio paciente.
***
Bibliografia:
CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático. Neo-obscurantismo e Gestão dos Indesejáveis. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2017.
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal, Uma Genealogia das Ideias Autoritárias no Processo Penal Brasileiro. Florianópolis: Ed. Tirant lo Blanch, 2018.
MARTINS, Rui Cunha. A Hora dos Cadáveres Adiados. Corrupção, Expectativa e Processo Penal. São Paulo: Ed. Atlas, 2013.
LEVITSKY, Steven e ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. São Paulo: Ed. Zahar, 2018, e-book.
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/09/4947736-bolsonaro-ataca-alexandre-de-moraes-em-encontro-ultraconservador.html, Acesso em 06/09/2021.
https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/em-sc-bolsonaro-ataca-barroso-aquele-filho-da-puta/; Acesso em 06/09/2021.
CLAUDIA MARIA DADICO é doutora em Ciências Criminais pela PUCRS. Conselheira da AJD – Associação Juízes para a Democracia. Membra da ABJD – Associação de Juristas para a Democracia. Juíza Federal em Florianópolis/SC.
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)
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