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Livreiros de rua, cultura do livro e burocracia estatal – por João Batista Damasceno
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Livreiros de rua, cultura do livro e burocracia estatal – por João Batista Damasceno

Por João Batista Damasceno

Nascemos indivíduos e nos tornamos cidadãos no processo de socialização, adquirindo a cultura do meio no qual vivemos.

Sociedade é um grupo de pessoas que convive com participação econômico-político-social por meio dos valores e sentimentos comuns, denominados cultura. A compreensão da importância dos valores que nos unem é um diferencial em nossa existência. Mas isto nem sempre é percebido por parcela da burocracia do Estado e por aqueles a quem se ordenam a execução do poder de polícia.

Na crônica passada sugeri o nome do cantor Roberto Carlos para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Terminei dizendo que “A ABL contribui para a difusão da língua portuguesa na sua forma escrita. Roberto Carlos também o faz. Muitos leem suas letras visando a decorar para cantar. Mais que a ABL e Roberto Carlos somente faz mais pela língua escrita o Livreiro Olivar, o Vavá, que vende livros a R$ 2,00 na entrada do Metrô da Carioca durante a semana e na Praça XV aos sábados”. Para que fui elogiar? Durante a semana fiscais da prefeitura apareceram na barraca do Olivar e ele estava ausente. Tinha atendido ao telefonema de um porteiro de um prédio que o chamara para buscar livros que um escritório jogara no lixo. Deixara uma pessoa tomando conta da banca. Ao voltar, foi informado de que os fiscais da prefeitura passarão de 3 a 5 vezes por dia na banca e que se o titular estiver ausente perderá o direito de mantê-la.

Um livreiro de rua não é um camelô que compra mercadoria fabricada na China ou vinda do Paraguai e que pode permanecer durante todo o dia no mesmo lugar à frente da mercadoria. Um livreiro de rua é um garimpeiro que visita apartamentos de quem esteja vendendo uma biblioteca ou vai a portaria de prédios, por chamada de porteiros, apanhar livros jogados fora. Por vezes raridades são desprezadas por familiares que não comungavam com o sucedido o gosto por livro

Olivar atende a centenas de porteiros no Centro, que lhe ajudam na preservação de raridades postas no lixo. Há 40 anos desempenha tal atividade de relevância cultural para a cidade. Não só o Olivar. Do Leblon a Campo Grande temos mais de 200 livreiros de rua, que vendem milhares de livros por mês a preço acessível a qualquer pessoa. Na banca do Olivar já dividi garimpagem com morador de rua interessado na aquisição de um livro, com ex-governadores de estados diferentes, com embaixadores e não raro com alguns colegas desembargadores do tribunal que componho. Uma banca de livro de rua é um espaço de convivência social. Morador da Zona Sul – e frequentador de alguns espaços privilegiados -, conheço toda a cidade do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense – do Km 32, em Nova Iguaçu, a Magé -, locais onde atuei como juiz por 18 anos, com frequentes inspeções pessoais. Nenhum lugar é socialmente tão plural quanto uma banca de livro de rua.

Monteiro Lobato dizia que “um país se faz com pessoas e livros”. A difusão da cultura por meio da língua escrita tem sido a contribuição destes heróis do livro, sob chuva ou sol. A Bienal do Livro deste ano foi a maior de todos os anos e o stand da Estante Virtual estampou uma fotografia do Olivar e sua banca, como reconhecimento pelo relevante serviço que presta à cultura do livro. Na comemoração dos 450 anos da Cidade do Rio de Janeiro tanto a Globo quanto a Jovem Pan transmitiram imagens do Olivar e sua banca, como expressão do cenário da cidade.

Foi a partir de livros apanhados numa calçada e levados para que crianças pobres pudessem ler na varanda de sua casa, na Vila da Penha, que Evando dos Santos, o pedreiro que nunca frequentou escola e aprendeu a ler sozinho, montou a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, instalada num prédio projetado para ele por Oscar Niemeyer. Evando já virou personagem de romance publicado na Itália, tema de tese de doutorado e enredo de Escola de Samba no Rio de Janeiro. Assim como Evando salva do lixo preciosidades inexistentes até na Biblioteca Nacional, os livreiros de rua prestam relevante serviço à cultura, preservando obras que de outro modo teriam como destino os lixões ou aterros sanitários.

Há alguns anos o Olivar deixou na Barraca 37, do Gaúcho, na Praia do Leme uns livros para doação aos banhistas. A SEOP encrencou pois o alvará não incluía a doação de livro. Daquela proibição resultou a Universidade Livre do Leme e o projeto Filosofia na Praia, tendo à frente o embaixador e ex-ministro da Cultura Jerônimo Moscardo. Aos sábados, de 11h00 ao meio-dia, intelectuais, estudantes e moradores se encontram para abordagem de temas específicos no quiosque da Maria Alice, em frente ao número 974 da Av. Atlântica, e doam livros a quem interessar. Graças ao Olivar, já foram doados mais de 50 mil livros. Em se tratando de livro, a SEOP e outros órgãos com poder de polícia do município deveriam ouvir antes a Secretaria de Cultura ou o Prefeito, sensível à questão cultural na Cidade do Rio de Janeiro.

Impedir que um livreiro de rua saia de sua banca para avaliar bibliotecas disponibilizadas por familiares de falecidos, ou recolher livros em portarias quando refugados por seus proprietários, seria um desserviço à cultura do livro e incentivo ao descarte de obras raras, muitas das quais já adquiri em tais mãos.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.

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