Por Isac Machado de Moura

Temperaturas abaixo de zero em cidades serranas do Rio de Janeiro. Perto de dez graus aqui pelo litoral, agravados nas madrugadas. Muitas brasileiras e muitos brasileiros em situação de rua. E por aqui não se pode, nem de longe, repetir a frase do Fidel: “Hoje várias crianças dormirão nas ruas. Nenhuma delas é cubana.” Muitas delas são brasileiras. Muitas. E seus pais. E seus avós.

As igrejas que tanto queriam estar abertas no auge da pandemia, estão fechadas nessas noites frias. Várias delas têm sistema de segurança, tantas outras têm seguranças. Uma católica, no centro de Cabo Frio, instalou uma espécie de arquitetura hostil em sua matriz, no recuo para a porta principal, afastando quem poderia dormir ali.

Ricas, as igrejas têm medo de pobres. Mais ainda de miseráveis. Se católica, precisa proteger seus objetos sagrados, caros, muitos deles de ou com ouro. Nunca importa de onde veio esse ouro, como foi garimpado, em que condições. Vira objeto sagrado, sangrado.

Se evangélica, precisa proteger seus equipamentos, seus instrumentos consagrados, oferecidos ao Deus que é dono do ouro e da prata. Lá dentro, o sagrado que precisa ser protegido. Lá fora, os Cristos, despejados, com frio. O povo que se arvora do Cristo não gosta do cheiro dos Cristos, das roupas, da falta de fineza.

A burguesia cristã também fede. Os Cristos fedem.

Cidade-estado do Vaticano, cercada por Roma, é a sede da Igreja Católica Romana e residência do Papa, está repleta de tesouros da arte e da arquitetura. (Divulgação)

Não há banheiros para os Cristos das ruas, das praças. Nem onde lavar suas roupas. Nem roupas reservas. Exige-se dos Cristos higiene. Os supostos seguidores do Cristo mantêm distância segura dos Cristos que fedem. Para acalmar as consciências, uma sopa quentinha. Salve a sopa quentinha. Ela pode ser comida lá mesmo onde eles dormirão. Distância segura.

Estacionamentos cobertos de igrejas ricas, espaço seguro para os carros dos irmãos, com vaga pastoral cativa, espaço que não pode ser comprometido com os Cristos das ruas. A nave do templo, nem pensar. Os irmãos não vão gostar de chegar para o culto sagrado do domingo, para a missa sagrada, e encontrarem aquele cheiro das ruas no templo. Nem pensar se alguém quebra ou carrega uma Nossa Senhora, um São Francisco de Assis, se mexem na bateria ou vão até o púlpito e mexem naquela Bíblia Sagrada, em hebraico, que veio de Israel.

Temperaturas abaixo de zero no Rio de Janeiro. “É o fim dos tempos, irmão.” Lá fora, os Cristos. Lá dentro, os cristãos.

Ação de acolhimento de pessoas em situação de rua na Zona Sul da cidade do Rio, durante a pandemia do coronavírus. (Reprodução)

Peças de arquitetura hostil numa igreja católica de Cabo Frio. A mesma igreja do papa Francisco. Do Cristo. De Maria. A mesma. Igrejas evangélicas fechadas com o presidente, fechadas para os Cristos das ruas. Medida de segurança. Não há esperança para um Cristianismo sem Cristo e sem cruz. Lá dentro, um objeto sagrado reluz. Precisa ser protegido. Relicário.

O Cristo foge diariamente do sacrário, como diz o irmão Júlio. O Cristo foge de um Cristianismo espúrio e se junta aos Cristos das ruas, que tremem de frio. Temperaturas abaixo de zero em cidades do Rio. O sagrado treme lá fora. O pseudo sagrado guardado lá dentro. Uma igreja fechada com aquele que produz sofrimento, que come picanha de 1.800 reais o quilo e divulga imagens para aqueles que passam fome e frio. Uma igreja que se impõe aberta na pandemia para cultuar Jesus, filho de Maria. Um Jesus de olhos azuis, cabelos loiros, manto auto-limpante; uma Maria de pele branca, cabelos escovados, lábios finos, vindos direto da Europa para os altares do Brasil.

Aqui, Cristos pretos tomam tiro de fuzil. Marias pretas, grávidas são abatidas por soldados cristãos. Retratos do Brasil. Lá fora, Marias tremem com seus pequenos Cristos, de frio. Lá dentro, Cristos e Marias protegidos por seguranças.

Há esperanças para a igreja do Brasil?

ISAC MACHADO DE MOURA é morador de Cabo Frio (RJ).

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