Por Paulo Augusto Oliveira Irion

Para o enfrentamento do tema faz-se mister, preliminarmente, uma digressão histórica e legal acerca do tema.

Inicialmente, na redação original da lei nº. 7.210/84 – a chamada Lei de Execução Penal – era exigido, como requisito subjetivo à progressão de regime, a submissão da pessoa presa a um parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário (artigo 112, caput, e § único, da aludida lei).

Tal exigência legal perdurou até a vigência da lei nº 10.792/2003, que, ao dar nova redação ao artigo 112 da Lei de Execução Penal, nada mais referiu acerca da exigência do parecer da Comissão Técnica de Classificação ou exame criminológico, substituindo-os, para a análise do requisito subjetivo necessário a progressão de regime carcerário, a comprovação de que a pessoa presa ostenta bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, ou seja, a apresentação do denominado Atestado de Boa Conduta Carcerária.

Repiso, para que não pairem dúvidas: desde 2003, com a lei nº. 10.792, que alterou a redação do artigo 112 da LEP, não há mais espaço para a realização de qualquer parecer técnico ou exame criminológico, já que a lei satisfaz-se com o tempo de pena no regime anterior (requisito objetivo) mais o atestado de boa conduta carcerária (requisito subjetivo).

Tudo isto porque o legislador, assim como grande parcela dos operadores da execução penal, desacreditaram da eficácia destes exames, pois eles tinham que fazer previsões para o futuro – no sentido de opinar sobre possibilidade de a pessoa presa voltar a delinquir, o que nenhum profissional da área de psicologia ou assistente social consegue prever -. Houve, desde então, a alteração para que se olhe o presente da pessoa presa com a avaliação de seu comportamento carcerário. É o olhar para o presente, sem palpites sobre o futuro.

Ademais, era sabido as carências de equipes técnicas para realização dos exames, bem como nas precárias condições das pessoas presas antecedentes ao exame, muitas vezes tomadas de indignação pelas desumanas condições que lhe são impostas no cárcere, o que conduzia, muitas vezes, a ser avaliada negativamente pelos técnicos.

Em tempo mais próximo, a Lei nº 13.964/2019 – denominada de Pacote Anticrime – alterou o art. 112, § 1º, da lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal) condicionou o direito à progressão de regime da pessoa presa à comprovação de sua boa conduta carcerária, atestada pelo diretor do estabelecimento prisional, em todos os casos (negrito nosso).

Cumpre observar que já é a segunda alteração legislativa acerca do tema, o que, além de regulamentar o período de cumprimento necessário à concessão da progressão de regime (requisito objetivo), exige, tão somente, a comprovação de boa conduta carcerária, que deve ser atestada pelo diretor da unidade prisional (requisito subjetivo). Nada fala – ressalto – em submissão da pessoa presa a qualquer tipo de exame de ordem psicológica/social.

Resta ainda observar, para repisar bem o tema, em uma análise topológica, que a nova redação da lei, no § 1º do artigo 112 da lei nº 7.210/84, menciona de forma taxativa, sobre “todos os casos”, está se referindo aos casos insertos nos incisos do caput deste mesmo artigo, os quais versam sobre os diferentes percentuais de requisito objetivo para progressão de regime, que variam conforme as características de cada delito e de quem o comete. Assim, em todos os casos previstos nos incisos do caput do artigo 112 da lei de execução penal, basta o aporte do atestado de conduta carcerária para análise do requisito subjetivo.

Necessário, ainda, registrar que se tem o entendimento de que a novel alteração legal afastou a incidência da súmula vinculante nº 26, do Supremo Tribunal Federal, uma vez que abordou o tema enfrentado na aludida súmula, sem fazer ressalvas de que, em algumas hipóteses, poderia o Juiz determinar a realização de exame criminológico, conforme consta na súmula referida. Não o fez, deixando claro que a lei não mais exige, em nenhuma hipótese ou tipo de crime em execução, espécie alguma de exame, bastando, para fins de progressão, o alcance do lapso temporal no regime mais gravoso e o atestado de boa conduta carcerária.

Nessa esteira – respeitados entendimentos opostos – considero que a submissão da pessoa presa a qualquer tipo de exame, como requisito da progressão de regime, viola, em sua essência, o princípio da legalidade, que é a base de um Estado Democrático de Direito, e inserto na nossa Carta Democrática como direito fundamental, previsto no inciso II, do art. 5º, que prevê: ” ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” Ninguém. Nem as pessoas presas que já cumprem suas penas em situações desumanas e degradantes, o que já levou o STF a declarar o sistema prisional brasileiro como um “estado de coisas inconstitucionais”. Afigura-se, assim, que a exigência de realização destes exames fere a própria Constituição Federal.

Para assentar ainda mais a matéria, recentemente, o Congresso Nacional derrubou parcialmente os vetos da Lei no. 13.964/2019, dentre eles o do parágrafo 7º, do art. 112 da LEP que, promulgado em 29 de Abril de 2021, passou a vigorar com a seguinte redação: “O bom comportamento é readquirido após 1 (um) ano da ocorrência do fato, ou antes, após o cumprimento do requisito temporal exigível para a obtenção do direito”. Desta forma, reafirma o bom comportamento carcerário como único requisito para comprovar o merecimento da pessoa presa para fins de progressão (requisito subjetivo), bem como estabelece um limite temporal para que readquira o bom comportamento carcerário. Ademais, o dispositivo legal prevê uma exceção à regra, ao possibilitar a reanálise do bom comportamento carcerário, ainda que isto ocorra antes de um ano do fato.

De todo o exposto, conclui-se que nem a Constituição Federal, nem a Lei de Execução Penal, trazem lastro para que se submeta à pessoa presa a qualquer tipo de exame como requisito para que possa, em observância ao sistema progressivo de cumprimento de pena privativa de liberdade, passar para o regime menos rigoroso e, assim, gradativamente, preparar-se para a reintegração social, com a retomada da liberdade.

Mas não é só. Deve-se registrar que diante das situações desumanas no cumprimento da pena no Brasil, em que presentemente existem mais de 800 mil pessoas presas, amontoadas em presídios superlotados, onde o superencarceramento das camadas pobres da população é uma triste realidade incontestável, deva-se buscar formas para mudar a cultura de que só há punição com aprisionamento.

Ademais, deve-se fomentar políticas públicas, iniciativas legislativas e judiciais, que alcancem a diminuição efetiva do encarceramento, quem sabe com a implementação de soluções reparadoras, deixando de lado a resposta meramente retributiva (punitiva).

Não é possível ir além da lei para restringir direitos. Por conseguinte, não se pode criar óbices que impeçam a pessoa presa sair destes lugares terríveis, onde ficam isoladas de suas famílias e das comunidades onde convivem. Ao medir-se a eficácia do encarceramento em relação à pessoa presa, sobressaem os fracassos em termos de recuperação e reintegração social. Neste sentido, ensina Ângela Davis: “Ao pensar na possível obsolescência do sistema prisional, devemos nos perguntar como tantas pessoas foram parar na prisão sem que houvesse maiores debates sobre a eficácia do encarceramento.“

Repisa-se que a punição com o encarceramento é uma instituição falida, que não é eficaz nem para a pessoa presa, nem tampouco para a sociedade, pois quanto mais se prende, menos se atinge o objetivo de diminuição dos índices de criminalidade. Os inúmeros e imensos problemas de dentro do cárcere saem para fora, aumentando a insegurança, distúrbios urbanos e criminalidade. Como bem colocado por Loïc Vacquant:

Uma última razão, de simples bom senso, milita contra um recurso acrescido ao sistema carcerário para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos no Brasil. É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais um campo de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção.

Diante deste quadro, em conclusão destas breves linhas sobre o tema em enfoque, o que se entende é que, presentemente, para fins de progressão de regime, basta o implemento do prazo legal de cumprimento de pena em regime mais gravoso (requisito objetivo), mais o atestado de boa conduta carcerária (requisito objetivo), para o deferimento da progressão de regime, sem a necessidade da submissão a qualquer tipo de avaliação psicossocial ou exame criminológico.

E para o integral cumprimento desta situação é que se exige que o Juiz da Execução Penal seja “um juiz garantidor dos direitos fundamentais dos condenados, e nisso resume sua função”, conforme leciona Alberto M. Binder.


PAULO AUGUSTO OLIVEIRA IRION é juiz de direito do 1º Juizado da 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre; Especialista em Ciências Criminais e mestre em Direitos Fundamentais; Membro da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.


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