Por Edinaldo César Santos Junior –
Seguramente, no início dos anos 2000, o Poder Judiciário brasileiro não poderia ser nominado como um oásis de igualdade racial. Em 2005, ao tomar posse na magistratura, as discussões sobre questões raciais na instituição eram praticamente inexistentes. Portanto, o acesso a uma instituição secular e elitista como a magistratura me reservaria uma viagem para dentro de mim mesmo, das minhas questões como ser humano, mas especialmente como um homem negro.
Performar no ambiente institucional significava, em regra, embranquecer-se. Entretanto, isso nunca foi e nem seria uma opção para mim. Sou um juiz negro. E, diante desse fato irrefutável, três circunstâncias sempre me sondavam: a solidão nesses espaços de poder; a necessidade de ter uma alta perfomance para ser validado na ocupação desse lugar e; a sensação da impossibilidade de cometimento do mínimo erro, cujas consequências, numa sociedade racista, não atingiriam somente a mim mas também a toda a minha coletividade racial. Conjuntura absolutamente inaceitável, mas vivida por muitos(as) de NÓS.
Assim, apesar de vivenciar formalmente as condições de qualquer outro magistrado brasileiro, a minha cor ainda poderia ser considerada um fator subordinante. Ao tratar das políticas territoriais em relação à raça, Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, lembra-nos de que nos racismos contemporâneos não há lugar para a diferença e os diferentes permanecem perpetuamente irreconciliáveis com a “nação”; são estrangeiros. Na mesma linha, Fanon diria que nós, negros, não somos escravos da ideia que os outros fazem de nós, mas da nossa (simples) aparição.
Perguntas como essas: “você é juiz(íza)?” ou “cadê o juiz ou a juíza?” em contextos evidentes de territorialidade judiciária consolidada, como um gabinete do(a) magistrado(a), por exemplo, demonstram uma odiosa manutenção de um pensamento estruturalmente racista que, consciente ou inconscientemente, identifica determinada raça como inautêntica para ocupação de determinados locais de poder.
Era 2008, quando iniciei minha trajetória associativa na magistratura e, sem dúvidas, encontrei excelentes parcerias em pautas emancipatórias nas lutas humanistas. Mas, como um preto fanoniano, o estar ainda sozinho na maioria desses espaços sempre me fazia questionar e era algo perturbador. As pautas raciais ainda não eram bem-vindas. Aos da cota negra, muitas vezes objeto de mera tolerância, exigia-se o esquecimento de sua negritude, demandava-se sua invisibilidade.
“E eu, juiz negro, não era também um juiz?”
Mas que sujeito-juiz-negro seria esse que, a partir de suas diferenças e de seu lugar de fala, não pode anunciar seus próprios temas, suas próprias questões, sendo “impedido” de ver observados os seus interesses políticos, sociais e individuais? E eu, juiz negro, não era também um juiz?
Ao problematizar essas indagações, percebi que não era somente a minha cor que me fazia diferente ou questionado, mas a minha forma de enxergar o mundo, de interpretá-lo.
Simplesmente, eu pensava como um negro. A obra do professor Adilson Moreira deixa claro para mim, hoje, que pensar como um jurista negro sempre significou, em minha trajetória profissional, uma interpretação da igualdade que observava as relações de poder como estruturais dos lugares sociais dos diferentes grupos raciais. Além disso, significava, em regra, uma consciência capaz de construir empatia com todos aqueles que viviam uma situação de subordinação como a minha.
A partir desses questionamentos foi que, anos depois de ingressar no associativismo, aliado a um processo de letramento racial e de crescimento das demandas sobre as ações afirmativas no país, senti que era a hora de romper com os silêncios.
Em maio de 2016, ainda na Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), propus, na Comissão de Direitos Humanos, a criação de um Grupo de Trabalho sobre Questões Raciais, para a organização de um Congresso Nacional de Juízas e Juízes Negros, que teria por finalidade, também, a proposição de estratégias específicas no âmbito da AMB, com a consequente criação de uma Secretaria para Questões Raciais, como a já existente Secretaria de Gênero. A AMB havia concluído recentemente uma pesquisaque revelava que, nos quadros da magistratura brasileira, apenas 1,3% se autodeclaravam pretos e 12,4% se autodeclaravam pardos, enquanto os brancos continuavam sendo a maioria dos juízes, ou seja, 84,4% (oitenta e quatro vírgula quatro por cento) da magistratura. A desigualdade racial na magistratura nacional estava posta. Embora aprovada por unanimidade na Comissão de Direitos Humanos, a proposta não seguiu adiante na entidade naquele ano.
O requerimento da organização de um congresso nacional da magistratura negra seria o embrião do I Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, o ENAJUN, que ocorreu exatamente um ano depois, em maio de 2017. Essa reunião, que somente ocorreu, à época, a partir de uma confluência de ideais com o juiz Fabio Francisco Esteves, foi realizada pela Associação dos Magistrados do Distrito Federal (Amagis-DF) e pela Associação dos Magistrados de Sergipe (Amase). Houve o importante apoio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) em todas as edições.
O sucesso do encontro ofereceu à magistratura negra um campo qualificado para se reconhecer e propor novos horizontes a um Poder Judiciário que vinha sendo reconhecido como inapto para agregar o diferente, replicando séculos de uma ética conservadora e desigual, e permitindo, ainda que indiretamente, a permanência de uma dinâmica que impedia a participação de pessoas negras em seus quadros. O Ministro Luiz Fux cita o ENAJUN, na ADC 41, alertando quanto à desigualdade racial no Poder Judiciário, chamando-a de diferença amazônica:
“1,4% dos juízes brasileiros são negros”
“Ontem, em razão do encontro dos juízes negros, eu tive a oportunidade de verificar que 84,5% dos juízes brasileiros são brancos; e 1,4% dos juízes brasileiros são negros. Eu vejo que há uma diferença amazônica.”
O ENAJUN inaugura um movimento negro na magistratura no Brasil. Esse coletivo, de 2017 até hoje, vem se consolidando como um ambiente de reflexão e ação, não somente quanto à democratização racial na magistratura, mas também quanto à necessidade de oferta eficiente de serviços judiciários à população negra.
A atuação do coletivo, em diversas frentes, tem gerado muitos frutos. Desde a IV edição, em 2020, o ENAJUN vem agindo em conjunto com o Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e todas as formas de Discriminação (FONAJURD). Representantes do ENAJUN foram nomeados, em 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para participarem do Grupo de Trabalho (GT) destinado à formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário. Através de um edital com chamada para uma reunião pública, diversos memoriais foram recebidos, da sociedade civil e dos demais atores do sistema de justiça, e muitas foram as propostas elencadas e sistematizadas pelo GT, resultando no Relatório Igualdade Racial no Poder Judiciário, que está sendo implementado pelo CNJ.
Em 2021, o ENAJUN/FONAJURD sagrou-se vencedor do Desafio Lideranças Públicas Negras, que foi criado pela Catálise Social para, entre outros objetivos, reconhecer e divulgar ações que estivessem promovendo equidade racial no setor público, gerando visibilidade e crescimento de profissionais negros e negras desse setor.
16 (dezesseis) anos se passaram desde que a magistratura se tornou uma realidade para mim. Tem sido um período de construção pessoal e coletiva, mas especialmente de percepção de uma desconstrução institucional. Hoje esse sujeito-juiz-negro se fortalece na coletividade. Ele não anda mais sozinho e não há mais lugar para silêncios.
Da invisibilidade dos nossos corpos à percepção de que nossos saberes se fazem relevantes à produção do conhecimento e à eficiência da resposta judicial às demandas sociais, temos uma longa caminhada, que não admite retrocessos. Nossas vozes negras têm como missão fazer-se ecoar nos quatro cantos desse país, inspirando outras e outros, que precisam acreditar que a magistratura pode ser um campo possível para fazer a diferença.
Na defesa por uma magistratura igualitária, em uma idealizada sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, não temos tempo a perder.
EDINALDO CÉSAR SANTOS JUNIOR é juiz de direito em Sergipe e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP).
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)
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