Por Jorge Folena –
É sob a perspectiva da defesa da soberania nacional que o Dr. Osny Duarte Pereira (juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cassado pela ditadura de 1964-1985, jornalista, escritor e magnífico pensador brasileiro) em 1962 denunciava os ataques que o capital promovia contra o povo e as riquezas do Brasil, valendo-se de políticos que pouco representavam os interesses dos titulares da soberania popular, em situação muito semelhante à que se apresenta atualmente no Brasil, ao longo de todo o (des)governo de Jair Bolsonaro, que se associou ao “Centrão” e aos seus muitos interesses escusos e patrimonialistas.
“Quem faz as leis no Brasil?” é o título de um pequeno grande livro, de autoria de Osny Duarte Pereira, publicado em 1963, que integra a coleção Cadernos do povo brasileiro, editada pela Editora Civilização Brasileira.
A proposta originária do autor, como veremos a seguir, era permitir aos jovens (e particularmente aos estudantes de Direito) a compreensão de como são feitas as leis, para não ficarem limitados ao seu estudo enquanto produto legislativo acabado, comumente feito nas faculdades de Direito:
“Portanto, para saber quem faz as leis no Brasil, não é tão importante conhecer a máquina de produzi-las, como, sobretudo, inquirir de onde vêm as forças que impulsionam aquela máquina. (…) Nas Faculdades de Direito ensinam-lhes todo o mecanismo. Não há, porém, nenhuma cadeira, em todo o quinquênio escolar, que se ocupe com o estudo das forças que movimentam a engrenagem complicada de elaboração das leis. Se algum professor penetra nesse terreno, é por conta própria. Não é bem visto pelos colegas da Congregação. Não passará de um ‘comunista encapuçado’, um ‘demagogo na feira das vaidades”.
A proposta de Osny demonstra o quanto é importante, não só para os juristas, mas para toda a sociedade, compreender integralmente o processo que dá origem às leis, perscrutando as suas causas e os bastidores de cada proposição.
Neste ponto, atribui-se a Bismarck a seguinte afirmação: “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Nos dias de hoje, no Brasil, tal assertiva deveria fazer com que a maioria esmagadora do povo brasileiro ficasse sem dormir, diante da ausência de perspectiva de futuro acarretada pelos cortes promovidos nos direitos sociais (trabalho, previdência, saúde, educação, moradia, alimentação, lazer, cultura, segurança), em benefício do capital especulativo, que impõe aos trabalhadores mais e mais horas de trabalho, sem quaisquer vantagens, com a obrigação de pagar cada vez mais tributos, enquanto os muito ricos ficam isentos.
A democracia representativa foi sequestrada pelo capital e o povo brasileiro serve apenas para validar o simulacro de eleições, que consiste em votar em candidatos (financiados com dinheiro de empresas privadas) que, depois de eleitos, dão as costas para a população.
O mestre Osny nos apresenta em sua obra um quadro que, a despeito de descrever o passado, surpreende pela atualidade ao fazermos uma comparação com a falsa democracia brasileira dos dias de hoje:
“Aparentemente quem faz as leis no Brasil são os membros do Poder Legislativo. Assim é em toda democracia representativa – fórmula que tão avidamente defenderam os governos das vinte repúblicas reunidas em princípios de 1962, ao tratar da expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA). As críticas que iremos desenvolver no andamento deste trabalho não pretenderão absolutamente demonstrar que seja condenável a democracia representativa. Ao contrário, insistiremos em que todo regime deverá ser democrático e representativo da coletividade. Nossos estudos serão no sentido de verificar se realmente é democracia representativa o regime praticado e se aquilo que está na letra da Constituição e das leis está na realidade dos fatos, isto é, se vivemos num regime em que existe liberdade de imprensa, liberdade de pensamento, liberdade de escolha dos mandatários do povo, liberdade para esses mandatários fazerem as leis que interessem ao mesmo povo num regime em que a Constituição e as leis se apliquem a todos, de modo a, em última análise, ser verdadeiro o preceito constitucional que reza: ‘Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido’. Iremos ver se é esse o regime que se pratica no Brasil, conforme se explica nas escolas primárias, secundárias e superiores, ou se, ao contrário do que muitos sinceramente acreditam, quem faz as leis no Brasil, naquilo que é fundamental, é, na realidade, um pequeno grupo de empresas estrangeiras. Numa esfera não fundamental, mas ainda muito importante, teríamos outro pequeno grupo de empresas e homens de negócios nacionais ditando a feitura das leis no Brasil. Veremos, finalmente, se as leis que se fazem, em real proveito da coletividade, surgem por imperativo da vontade do povo ou, apenas, quando há choques nos interesses de tais grupos e quando, um deles, para sobreviver, necessita de apoio popular e, então, como um donativo e um chamariz, tais leis benéficas são deixadas escapulir. Se nossa Constituição tiver sido elaborada por essa última forma, nesse caso, quem faz as leis no Brasil não será o povo, nem serão seus mandatários, porém, um certo número de pessoas que detêm o poder. O Brasil não estará sendo uma democracia representativa, como se costuma afirmar, porém uma oligarquia, ou plutocracia, ferreamente plantada sobre a cegueira de dezenas de milhões de brasileiros.”
A boa literatura tem denunciado, bem antes de Osny Duarte Pereira, a farsa da representação popular. Zola, em Germinal, já perguntava em 1885:
“Quem poderia afirmar que os trabalhadores tiveram sua parte razoável dentro do extraordinário crescimento da riqueza do bem-estar nos últimos cem anos? Haviam zombado deles ao serem declarados livres: é isso, livres para morrer de fome, do que, aliás, não se privavam. Depois de serem eleitos, os malandros caíam na farra, deixando os trabalhadores esquecidos como se fossem velhos calçados. Não dava pão a ninguém votar em malandros que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis como nas suas botas velhas.”
Afirma-se, no Brasil do passado e do presente, que o povo é o detentor de todo o poder; e nós acreditamos fielmente que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Porém, Osny Duarte Pereira desnuda essa convicção, transmitida como dogma nas salas de aula dos cursos jurídicos:
“Bacharéis honrados e até cultos chegam mesmo a crer convictamente nesse dogma. Que pessoas são consideradas povo, quantos são esse povo, que requisitos precisa ter alguém para ser considerado do povo, como se funda um partido, o que é realmente preciso para ter um partido político, como se organiza a lista dos candidatos, quais são os efetivos requisitos, nada disso faz parte oficialmente do programa de ensino nos cursos jurídicos. Também se ensina que o voto é livre por ter a garantia de ser secreto. É outro dogma. Não se indaga se essa vontade livremente exercida atrás da cortina de votar pode ter sido condicionada, por uma propaganda dirigida no rádio, na televisão, nos melhores artifícios de uma empresa de publicidade, no fato de precisar o eleitor de um emprego, de um leito de hospital e até de um par de sapatos.”
Considerando os acontecimentos políticos em curso desde o golpe de 2016, que afastou indevidamente Dilma Rousseff da Presidência da República, é forçoso concluir que inexiste diferença entre o passado e o presente na democracia do Brasil, na medida em que as leis que estão sendo aprovadas, propostas sob o rótulo de “reformas”, têm servido exclusivamente aos interesses do mercado financeiro (com total apoio de governos como os de Michel Temer e Jair Bolsonaro) contra o povo brasileiro, num ataque, sem medida, à soberania popular e a principalmente à Constituição de 1988, que foi escrita para proteger os nossos cidadãos.
Por isto, recomendamos a retomada da leitura de “Quem faz as leis no Brasil?”, de Osny Duarte Pereira, para ajudar a compreender o cenário político atual no país e para retomarmos a luta em defesa dos princípios fundamentais da Constituição. E, para reflexão, deixamos a indagação com que o mestre encerra a sua obra, em 1962:
“Quando passará o povo a ser voz dominante no Congresso?”
JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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MAZOLA
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