Por Mariana Andrade

“Refletimos o ngunzo de viver sobre a terra semeando enredos”.

Ngunzo, Àse, energia vital para muitos povos na África e suas diásporas. Força, poder e vibração que mobiliza as criações contidas em Quilombellas Amefricanas, Coletânea Poética, em dois volumes, organizada por Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún — lançados pela Editora Ogum’s Toques, em 26 de junho, em seu canal no Youtube.

As autoras já adiantam em seu texto introdutório que “não nos propomos a inventar a roda”, pois “Quilombellas Amefricanas chega para somar a todas e todos que viveram e morreram para chegarmos até aqui”, honrando o legado ancestral e coletivo que as letras negras assumem desde os gritos de liberdade e justiça conclamados por Maria Firmina dos Reis com a publicação do romance Úrsula em 1859, cuja tradição abolicionista é seguida por este “quilombo transatlântico”.

As 23 vozes amefricanas de Anita Canavarro, Cláudia Santos, Conceição Lima, Cristiane Sobral, Daniela Luciana, Eliane Marques, Elizandra Souza, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Gabriela Ramos, Geni Guimarães, Gonesa Gonçalves, Goretti Pina, Luedji Luna, Luz Ribeiro, Marta Quiñónez, Mel Adún, Odete Semedo, Rita Santana, Sapphire, Shirley Campbell Barr e Tânia Tomé, mulheres negras com nome e sobrenome, como nos ensina Lélia Gonzalez, contam, também, com o apoio das mãos de Dadá Jacques, nas ilustrações e direção de arte; e Guellwaar Adún, no projeto gráfico — que, aliás, grafam os nomes das autoras com letras minúsculas, assim como nos provoca bell hooks.

São essas muitas e múltiplas escritas que, mesmo inscritas numa continuidade, conforme as próprias organizadoras salientam, irrompem em pioneirismo potente e pungente não só para a própria literatura negra, mas também para a fortuna crítica, que terá muito sobre o que se debruçar para analisar as experimentações, construções estéticas, genealogias, inventividades, transgressão e transnegração, referencialidades e tantas possibilidades analíticas que se descortinam para demonstrar, dentre várias outras leituras, o óbvio:

“Somos diversas, mas não dispersas”, em consonância com Marielle Franco.

Homenagens a José Carlos Limeira (in memoriam), a mães e mainhas, tias de santo (como Maíra Azevedo no poema de Daniela Luciana), referências e reverências a Òrìsà, Nkisi e Vodun, a outras Quilombellas como Noêmia de Souza (citada por Rita Santana), evocações implícitas e explícitas que dizem de afetos, desejos, vínculos, credos, ódios e ojerizas (no convite feito pela voz serena e intrépida de Luedji Luna em seu brado poético), estimulando interpretações sobre redes, performances, trânsitos e ficcionalizações.

Quando o epistemicídio e silenciamento impostos às letras negras reduzem a pouco mais do que os dedos de uma mão as referências celebradas pela grande mídia de escritoras negras no Brasil e no mundo, essa coletânea nos traz 23 nomes do nosso país, Costa Rica, Moçambique e Estados Unidos e suas respectivas produções, a maioria inéditas, no empenho de sobrepujar o “cânone”, esta instituição macho-euro-centrada, erigida por brancos pulsos.

As escritas negras estão vivas e reverberando, inquietas, insubmissas, sem a clássica acomodação medíocre de uma tradição de sobrenomes longos, repletos de patrimônios materiais herdados. Sem exotização, folclorização, sem apelos comerciais como se as pautas das populações negras fossem um “nicho”, uma percentagem mínima a ser preenchida para se classificar como ‘inclusiva’ ou parte da ‘diversidade’.

A práxis comunitária na qual Quilombolas Amefricanas se insere é parte de uma tradição. Não a das “armas e barões assinalados”, mas, sim, de outras: de uma interlocução suleada, herdeira que é do Quilombo hoje, configurando-se, também, em patrimônio material e imaterial das Literaturas Negras, das empresas editoriais negras no Brasil.

Este livro não é peculiar ou inovador somente porque se tratam de escritas de autoria de mulheres negras de vários países; é perverso reduzir tanta potencialidade em uma classificação tão insuficiente. Também não é possível confinar tantas vozes a uma resposta uníssona ao racismo. São esses e muitos outros aspectos que constituem essa coletânea, são essas e muitas outras perguntas e respostas presentes nesses poemas.

É o ngunzo catártico de muitas mulheres negras de agora, de antes e que estão por vir, que comunitariamente fortalecem e semeiam enredos, poeticamente colhendo persistentes narrativas de resiliência e insurgência.

MARIANA ANDRADE – Doutora em literatura e cultura e crítica literária.

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