Por Jorge Folena

A combativa jornalista Hildegard Angel informou na sua conta do Twitter (de 20 de abril deste ano) que uma rede privada de saúde está operando leitos em hospital federal do Rio de Janeiro, que deveriam ser administrados exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde.

Este lamentável fato constitui-se em tentativa de privatização da saúde pública, por meio de um distorcido “sistema híbrido”; e mais, caracteriza uma grave violação à Constituição; além de representar flagrante negativa à autoridade Supremo Tribunal Federal. Mas o que esperar do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, que incentiva o ódio indiscriminado, manifesta indiferença total aos pobres e considera-se integrante do grupo “dos empresários” e dos ricos, para os quais governa?

A permissão para que empresa privada utilize instalações públicas integradas ao Sistema de Saúde Pública, mesmo em se tratando de manifestação de boa vontade (que não existe no capitalismo), abre as portas para o regime de diferenciação de classe, incompatível com o sistema público de saúde brasileiro, que impõe que “o tratamento igualitário é uma regra que não comporta exceções,” conforme expôs o Ministro Dias Toffoli no exame do Recurso Extraordinário nº 581.488.

Essa questão da possibilidade de se estabelecer diferenciação de classes foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 581.488/RG/RS (relator Ministro Dias Toffoli), quando um recurso apresentado por Conselho de Medicina tentou estabelecer a internação em “acomodações superiores” no âmbito do Sistema Único de Saúde e o atendimento diferenciado por médicos do próprio SUS ou conveniados, mediante pagamento. Naquele julgamento, o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

“1. É constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de  Saúde, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de  Saúde  (SUS) ou por conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes.

2. O procedimento da “diferença de classes”, tal qual o atendimento médico diferenciado, quando praticado no âmbito da rede pública, não apenas subverte a lógica que rege o sistema de seguridade social brasileiro, como também afronta o acesso equânime e universal às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da  saúde, violando, ainda, os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Inteligência dos arts. 1º, inciso III; 5º, inciso I; e 196 da Constituição Federal.

3. Não fere o direito à  saúde, tampouco a autonomia profissional do médico, o normativo que veda, no âmbito do SUS, a assistência diferenciada mediante pagamento ou que impõe a necessidade de triagem dos pacientes em postos de  saúde  previamente à internação.

4. Recurso extraordinário a que se nega provimento.”

Em consequência desse julgamento, o Supremo fixou a seguinte tese, como Repercussão Geral, que deve ser seguida por todos os juízes brasileiros, pela Administração Pública e pelo Parlamento:

“É constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de Saúde, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de  Saúde, ou por médico conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes.”

Referida tese da diferenciação de classe foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme o voto condutor do Ministro Dias Toffoli, que assim se manifestou:

“O legislador constituinte estabeleceu expressamente que o atendimento público de saúde brasileiro deve pautar-se não só pela universalidade e pela integralidade do serviço, mas também pela equidade. Não estabeleceu o constituinte, no tocante a tais requisitos, exceção alguma. Portanto, no que concerne ao Sistema Único, o tratamento igualitário é uma regra que não comporta exceções.”

Ao permitir que empresa privada da área de Saúde utilize as instalações de Hospital Público, por mais bem intencionada que ela esteja em colaborar no enfrentamento da COVID-19, a autorização dada pelo Ministério da Saúde propicia uma estratégia que abre as portas para a privatização do SUS e para a prática do tratamento não igualitário, na medida em que cria exceções privilegiadas para determinadas pessoas ou grupos, em detrimentos de outras nas mesmas condições sociais, de faixa etária e de saúde, o que desrespeita a universalidade, a igualdade e a equidade.

Portanto, é urgente que seja determinada a desocupação das instalações do Hospital Federal da Lagoa, por parte da empresa que está utilizando o referido espaço e os leitos correspondentes.

Além disso, é necessário que as instituições públicas que se manifestam ferozmente em ataques contra governadores e prefeitos que se esforçam para combater a COVID-19, como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria Geral da União, o Procurador Geral da República e, também, o Ministério Pública Federal do Rio de Janeiro, venham a público explicar o que fizeram até aqui para combater esta violação à Constituição e ao Sistema Único de Saúde.

Caso contrário, muito em breve teremos consolidado um cenário econômico semelhante ao vivido pela Rússia após a dissolução da União Soviética, quando os oligarcas expropriaram para si o patrimônio público, constituído por décadas de trabalho de todo o povo.

Mediante a aquisição de empresas e bens públicos a preços vis, os integrantes desse grupo russo adquiriram enorme riqueza e influência política, levando à exploração e à miséria da população, a exemplo do que vem ocorrendo no Brasil desde o indevido golpe do impedimento de Dilma Rousseff, em 2016.

Diante da crise política, econômica e social em que os golpistas lançaram o Brasil, é urgente que seja dado um basta aos desmandos de Bolsonaro, às manipulações de Paulo Guedes e ao servilismo dos militares, que se valem do falso pretexto da “defesa do interesse nacional” para desmantelar a democracia.

Caso contrário, muito em breve teremos nos transformado na Rússia de Boris Yeltsin, mergulhados na completa pobreza e na subserviência internacional.


JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.