Por Lincoln Penna

A atitude prepotente costuma encobrir a fraqueza de caráter. Não tolera a crítica e tampouco a convivência com o contraditório por julgar, quem assim procede, que é o dono absoluto da verdade. Essa sentença se aplica a muita gente, bem sei, mas quando se trata de pessoas que exercem papéis de grande responsabilidade, como a presidência da República, essa atitude prepotente tem implicações nefastas.

Este ano faz 60 anos que me alistava para o serviço militar e na época parte de minha geração tinha algum apreço pelas Forças Armadas. Sendo eu de família de militares pelo meu lado materno, era natural que quisesse atender à convocação. Preferi ir para a tropa, e tornei-me um soldado, o que implicava em treinamentos e exercícios de esforço físico, já que me encontrava numa unidade de infantaria.

Lá conheci o sargento Joel, instrutor dos recrutas.

Era severo nos treinamentos e sábio no trato com os jovens de distintas origens sociais, desde os que vinham dos subúrbios e comunidades mais distantes e carentes até os filhos da classe média, geralmente já universitários, mas que optavam em dispensar o CPOR para encurtar suas passagens pelo breve serviço à pátria, como se dizia à época, de dois anos de alistamento para apenas um ano.

Certa ocasião eu fiquei brabo com Joel porque sentira uma fisgada no músculo adutor em uma marcha acelerada e deixei de acompanhar o pelotão. Talvez imaginando que estivesse fazendo fita para sair do caldeirão daquela manhã ensolarada, com temperatura elevadíssima. E o pior trajado com farda de campanha e coturnos pesados, o que nos deixávamos banhados de suor. Ao perceber a minha retirada, o sargento Joel deu-me uma bronca na frente de todo o pelotão. A minha reação foi de indignação naquele momento. Não mais o olhava sequer. E ele percebeu a minha reação e a mágoa de ter me sentido humilhado.

Passado o tempo destinado ao treinamento e já dispensado para ir servir no DGP situado no Palácio Duque de Caxias, ministério da Guerra, Joel procurou-me e disse: sua atitude não poderia ter sido outra para comigo. Eu me excedi ao dizer o que disse naquele dia. E gostei de como reagiu porque você fez talvez sem o saber a distinção que precisa ser feita: uma coisa é ser subalterno, e como soldado você o é e deve obedecer as ordens de seus superiores, desde que elas sejam marcadas pela observância de normas e decisões embasadas no respeito ao que recebem as ordens. Outra coisa é ser subserviente. Você merece o meu respeito porque soube ser subalterno, mas recusou a situação de subserviência por ter, com razão, julgada intempestiva o meu comportamento naquele episódio. E me deu os parabéns.

Nunca mais o vi ou soube dele, mas ficou essa aula magistral de cidadania.

Ao assistir os comportamentos de subserviência de oficiais generais no governo do capitão da reserva que exerce a presidência da República não posso deixar de lembrar o sargento Joel e compartilhar com quem vier a ler este texto. A subalternidade diante do cargo presidencial ao qual a Constituição do país atribui a condição de Comandante em Chefe das Forças Armadas é uma coisa. Mas a atitude subserviente, como lembrava Joel, destoa e apequena as figuras de generais, sobretudo, diante de medidas ou ausência delas em momentos de pandemia como estamos a viver.

Esse exemplo que vem de cima arrasta outras atitudes, que não deixam de ser igualmente também de prepotência, como o uso de cargos para beneficiar parentes e amigos na operação “fura fila” da vacinação contra a covid, que tem se tornado freqüente em vários pontos do país, a merecer o repúdio nacional e internacional diante do uso da máquina pública, como se isso não fosse algo condenável. Se não fosse corrupção.

Sem saudosismo é preciso dizer: como era bom viver nos tempos em que nas Forças Armadas tínhamos os melhores exemplos de dignidade, austeridade e paixão pelo serviço militar. Tempos que, por certo, não voltam mais. Contudo, como faz bem nos lembrarmos desses tempos, que nos ajudaram na formação de cidadanias tão necessárias nos dias que correm.

Onde estiver aquele abraço, sargento Joel.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.