Por Ricardo Cravo Albin

“A obra prima do romancista Lucio Cardoso é uma descida aos infernos da angústia e da culpa”. (Alfredo Bosi, crítico literário)

Assim me parece o Brasil de hoje. Razão por que tomo emprestado o título acima do romance de Lucio Cardoso como paráfrase de um Brasil-Casa Assassinada nesta última semana, quando o país se deparou com a criminosa falta de gestão, de mínima agilidade, e de planejamento em relação ao assunto mais importante dentre todos, a vida e o sofrimento dos brasileiros ao longo da mais dolorosa tragédia nesses últimos cem anos, a pandemia que está prestes a ceifar duzentas mil vidas. E, o pior, agora em curva ascendente nas infecções. Isso no mesmo momento em que as vacinas-salvação começam a ser massivamente aplicadas no Reino Unido, na Europa e nos Estados Unidos. Por quê? Porque todos os países sérios levaram meses a estudar seus planos para a vacinação em massa.

Minha sofrida metáfora, um microcosmo, quer realçar as palavras dirigidas ao livro Casa Assassinada por Carlos Drummond de Andrade como “retratos especiais do ser e seus procedimentos”. Ou as de Eduardo Portella como “metástese moral das ações dos donos da Casa decadente”.

Assim pareceu meu desditoso país ao ser apanhado de calças curtas, avaliado com indignação e perplexidade por todos nós. Sem planejar coisa alguma frente às demais nações, inclusive os Estados Unidos. De mais a mais o Presidente Trump, negacionista do vírus e das medidas cautelares para a não propagação, tal como seu colega e amigo Bolsonaro, sacou rapidinho da algibeira todo um plano de vacinação estratégica em poucas horas, até parecendo negar seu passado de desdém à Peste.

Que maldição será então essa de que este governo é vítima, na rabeira do mundo fazendo tudo errado e sempre atrasado?

Onde está a cabeça do nosso Presidente? Quem não o adverte de que um país nada tem a ver com a administração de boteco da esquina?

Enfim, a ficha do desconforto e da vergonha caiu nos corações dos brasileiros quando a senhorinha de 90 anos recebeu a primeira vacina em Londres há dias, e quando o governador Dória de São Paulo anunciou um dado concreto, seja ou não marketing político, o que de nada importa:  a vacinação para todo Estado de São Paulo em 20 de janeiro. Isso representou uma lufada de ar fresco, finalmente o que todos queremos, a imunização contra a pandemia.

Parece que só assim Presidente e Ministro Pazuello acordaram, pela pressão popular, de seu imobilismo, do sono macunaímico. E em menos de 24 horas, o país, atordoado e estarrecido, foi apresentado ao disparate de vários planos mal ajambrados, planejamentos improváveis e assinaturas não autorizadas de técnicos infectologistas.

Até que uma voz de salvamento se anunciou. O Ministro Fux (Presidente do STF), atendendo ao Ministro Lewandowski, deu um chega pra lá na incompetência federal e anunciou o que toda a população ansiava ouvir, prazo curto, muito curto (24 horas), para apresentação de um protocolo da vacinação. Inclusive pressionando a ANVISA, hoje aparelhada ideologicamente ao que se deduz. Ela também, aliás, está sendo pressionada por centenas de governadores e prefeitos de todo o país. Que já correm ao governo de São Paulo e ao Butantan por fatias da vacina.

Finalmente, pude dormir uma noite sem pesadelos.

Aliás, vale acrescentar que o cineasta Paulo César Saraceni fez do romance belíssimo filme em 1971.  Lucio Cardoso foi fartamente mimoseado pelo também cineasta Luiz Carlos Lacerda com o biográfico “O Enfeitiçado”, e o “A Mulher ao Longe”, documentário sobre o raro filme dirigido por Lucio em 1949. Lacerda ainda dirigiria “O que seria deste mundo sem paixão”, um encontro onírico de Lucio com Murilo Mendes.

O crítico paulistano Bosi afirma que a Casa Assassinada desmente com brio o estereótipo de que se tenha construído uma trama centrada nos aspectos pitorescos da vida nos trópicos. Seu trânsito é universal e supera demarcações.

Assim deveria ser o Brasil, estar ao lado do mundo civilizado. E não fechado em miniaturas pitorescas de uma, mais uma, reles “república banana”, sempre o último em ciência. E sem respeito aos seus habitantes.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.