Por Ricardo Cravo Albin

“Se você ficar neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Reverendo Desmond Tutu.

Nesses dias de silêncio e de retiro, fico plantado em meu escritório a devorar livros especialmente às portas da segunda onda da Peste Mundial, agora já adentrando o Brasil com igual fúria e intensidade. A mesma que está a ocorrer com os Estados Unidos. Já que me referi a livros para ler na pandemia, recomendo o último do nosso Mário Vargas Ilosa “Tempos Ásperos”, uma obra-prima do Prêmio Nobel peruano e ex-presidente mundial do Pen Clube, centrado na política externa norte-americana. Ele detalha a trama que derrubou o Presidente Jacobo Arbenz da Guatemala em 1954. Imperdível pelo exemplo da ação dos Estados Unidos a impedir nas Américas a influência da União Soviética na Guerra Fria.

Aliás, falando nos E.U.A, cabe observar que:

1- Nossos dois países têm presidentes siameses, ambos a disparar os mesmíssimos valores de uma confusa extrema direita, das quais insistem em ser beneficiários e teóricos.
2- Ambos desdenharam, desde o início, a pandemia, subtraindo das respectivas áreas federais as esperadas gestão e agilidade, transferindo-as ingenuamente para os estados e as cidades de cada país. O que só potencializou o contágio por falta de concentração de gestão.

3- Ambos perderam e estão a perder nas urnas.

4- Ambos compartilharam da negação à OMS, permitindo-se à temeridade de negar a ciência e a censurar medidas de proteção higiênica como máscaras, distanciamento social, além de rejeitarem lockdowns e a paralização das cidades para abortar a contaminação eminente.

Onde já se viram políticos tão cegos a preferirem publicamente a economia à vida humana às de seus próprios eleitores? Ademais, ambos assumiram o esdrúxulo papel de arautos milagreiros de uma poção mágica chamada cloroquina, negada pela ampla maioria dos médicos.

Não bastasse isso, toda a população mundial reza de joelhos pela chegada das muitas vacinas. Mas os presidentes-gêmeos emitem desconfianças sobre seus efeitos práticos e até origens nacionais, em especial a chinesa, como se ciência e salvação pública tivessem partido político ou ideologia.

Pois bem, sequer me refiro aos fantasmas que povoam Trump e Bolsonaro de estarem sendo roubados no sistema de apuração eleitoral.

Ressalto aqui, contudo, uma trágica coincidência a unir os dois países: a tragédia do racismo, culminando no assassinato de dois homens negros por policiais brancos em condições quase idênticas. Ambos brutalmente agredidos até a morte, pelo mesmíssimo método, a asfixia. Trump justificou apenas a manutenção da ordem pública, mas Bolsonaro envergonhou o país ao afirmar na Reunião dos 20 que o preconceito racial nunca existiu por essas bandas. Preconceito urdido, segundo ele, apenas para enxovalhar o Brasil, tirando-o de sua amável miscigenação e da exaltação de país folgazão, o de carnavais, “do samba e do pandeiro”.

Na sequência dos pensamentos de Gilberto Freire ou Sergio Buarque de Hollanda, que sempre me foram tão estimados por louvar o ideal da mistura racial e da cordialidade, ideólogos como o pioneiro Abdias Nascimento já denunciavam em 1978 “O genocídio do negro brasileiro”, que desmente a nossa idealizada “democracia racial”.

Segundo Abdias, prefaciado por Florestan Fernandes e pelo nigeriano Wole Soyinka (Prêmio Nobel), o Brasil foi vitimado por racismo mascarado e por políticas de extermínio e de injustiças seculares contra os negros. De fato, a partir das denúncias do fundador do Teatro Experimental de Negro, uma sucessão de teses em socorro de suas teorias começou a adentrar às universidades e às almas brasileiras. A partir daí capazes de debater sobre direitos então encobertos. Escritores do porte de Joel Rufino dos Santos, Lélia Gonzalez, Milton Santos, Ney Lopes, Haroldo Costa, Muniz Sodré, Eliana M. Cruz, Conceição Evaristo, entre tantos intelectuais negros incentivaram reflexões sobre racismo e a quebra de direitos humanos básicos.
O assassinato de João Alberto em Porto Alegre repercutiu mundialmente, até pela ironia trágica de ser consumado às vésperas do feriado imposto pelo Dia da Consciência Negra. Sempre vale repetir o bordão de Martin Luther King:

“O que me preocupa no racismo não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.

E por falar em ironia e preconceito, cito aqui uma das culminâncias da má gestão pública que parece infectar todo o Brasil. Além do absurdo de o Estado do Amapá ficar sem energia por longas semanas, eis que surge a denúncia de que um estoque de milhares de testes para mapear possíveis doentes de Covid estão por expirarem na validade. Um crime contra a Saúde Pública que não pode acontecer, caso o serviço público federal funcionasse cumprindo mínimos deveres. Ou seja, exclusivamente falta de gestão.

Finalmente, dentro desse estado de desencantamento com o país, como acentuaram os colunistas Miriam Leitão e Merval Pereira em O Globo, registro o baixíssimo nível do debate eleitoral para o segundo turno no Rio. O candidato Crivella, sem qualquer prova, afirmou que Eduardo Paes entregará ao PSOL a Secretaria de Educação e que o Partido de Chico Alencar imporá a pedofilia nas Escolas Municipais. Isso além de ofender a honra pessoal da masculinidade de João Dória e de Eduardo Paes, razão porque ambos deverão processá-lo criminalmente. Razão igualmente justificada de as ruas começarem a chamar Crivella de Bispo das Trevas.

Apesar dos tantos erros políticos de Bolsonaro, parece que ele teria se recusado a aderir ao menos no segundo turno o hoje reconhecido “pior prefeito da cidade do Rio”. Meno male, Presidente, meno male…


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.