Por Jorge Folena –
As constituições brasileiras, de forma geral, apesar de preverem direitos avançados, postam-se distantes das necessidades de um povo ainda carente de quase tudo, pois o “mandonismo” ou “filhotismo”, características secundárias do ‘coronelismo’ (segundo Victor Nunes Leal), ainda se impõe como prática comum na política brasileira.
Por isso, há nas diversas regiões do país, muitos políticos que, pela força do patrimonialismo, conseguem eleger seu clã familiar e seus amigos para todos os cargos eletivos, de vereador a deputado estadual e federal, de senador e até mesmo Presidente da República, como se vê no “Brasil acima de tudo”.
Isso, sem dúvida, contribui para que os princípios constitucionais republicanos da igualdade e da oportunidade fiquem distantes da realidade política cotidiana de nossa gente, revelando a ausência de equilíbrio das forças políticas e sociais, necessário para garantir a separação de poderes, indispensável a uma sociedade democrática.
O pior é que o coronelismo é sempre marcado por uma atuação política autoritária, onde o “mandonismo” impõe-se pelo medo, que é um princípio típico dos déspotas em seus Governos, como ressalta Montesquieu.
O Brasil é um país de dimensões continentais, que apresenta múltiplas variações regionais e características geográficas específicas, que poderiam torná-lo uma federação de fato, na qual deveria imperar a descentralização de poderes entre suas unidades. Mas, ao contrário da intenção com que foi fundada, é uma federação que sobrevive como um estado unitário, com seus componentes sempre dependentes dos repasses de recursos e iniciativas promovidas pelo Governo Federal.
Quanto a isto, é importante ressaltar que a federação, no Brasil, foi fundada a partir da necessidade dos líderes dos estados-membros (os governadores) de deter o controle do poder político local, frente ao Governo central republicano, instalado com o fim do Império (em 1889), mas que contava com a estrutura do regime anterior, de estado unitário, forjado na unificação nacional e mantido pela força militar de origem imperial.
No início da República, o enfraquecimento das Forças Armadas foi o caminho aberto para a “grande transformação política do Brasil, a maior revolução verificada entre nós – a passagem do poder das mãos da federação, das mãos do Brasil, para as mãos dos Estados” (Raymundo Faoro).
Ou seja, a federação, no Brasil, não nasceu em decorrência da realidade geográfica ou cultural, em que a unidade nacional se impunha diante da defesa do território do país; ela surgiu para atender aos interesses locais, representados por estruturas de poder típicas do coronelismo, que não levam em consideração o equilíbrio das forças sociais; e foi criada sem a indispensável autonomia financeira das unidades federadas.
Assim, desde a fundação da federação, as unidades federadas não têm a necessária autonomia financeira, caso da maioria dos estados-membros e municípios que, até hoje, são totalmente dependentes dos repasses de recursos do Governo Federal, mesmo podendo arrecadar tributos de suas respectivas competências.
Nas palavras de Raymundo Faoro, “o aparelho fiscal e financeiro, concentrado na União, permitia sufocar essa reação (dos estados-membros discordantes do poder central), dada a penúria dos Estados para proverem as suas necessidades”. Diante dessa origem, podemos dizer que o conceito de federação constitui apenas um programa constitucional, sem real implementação, como tantos outros.
A adoção do federalismo no Brasil representou, ao nosso ver, o “retorno ao ponto de partida”, na medida em que, instaurada a República, “os conservadores, batidos pelos liberais na última eleição imperial, aderem em massa aos republicanos” (Faoro).
Esta ação dos grupos políticos oriundos do coronelismo, que assumiu o controle político do Estado brasileiro a partir da República Velha, está presente no agir político nacional e representa os interesses patrimonialistas, exemplificados não apenas pelo “centrão”, como ocorreu no processo de elaboração da atual ordem constitucional, mas também por meio da formação de bancadas ditas “ruralistas”, “evangélicas”, “da bala”, “da bola”, “das mineradoras”, “dos bancos”, “do agronegócio” etc., que têm sua origem tanto no campo como nas cidades, mas que representam os mesmos interesses de sua formação originária nas oligarquias agrárias, controlando cargos públicos nos Governos, verbas orçamentárias e, se possível, influenciando o entendimento dos tribunais, que flutua conforme os grupos e seus interesses e se expressa por meio de interpretações jurídicas que, ora caminham numa direção, ora em outra, de forma que as regras estejam sempre a favor do grupo no exercício do poder.
Por tudo isto, este quadro político ainda presente revela que inexiste uma federação com unidades autônomas, como prevê o texto constitucional, porque, desde a fundação da República, os Estados federados, mesmo os mais ricos da região sudeste, são dependentes de repasses da União e do refinanciamento de suas dívidas públicas, não tendo como sobreviver com recursos próprios, pela arrecadação dos tributos que lhes competem constitucionalmente, restando presente o quadro de desequilíbrio das forças políticas e sociais para garantir uma estrutura realmente democrática.
Daí acreditarmos que o texto constitucional brasileiro apresenta muitas normas programáticas, de conteúdo aberto, que se efetivam apenas conforme permitem os interesses do grupo dirigente dominante, sem levar em consideração o que foi acordado na formação do Estado político, por meio dos debates constituintes.
Existe uma anomalia efetiva entre o que foi debatido, com boa intenção, na elaboração do texto político, e a sua aplicação, quando a atuação das instituições não corresponde às expectativas das pessoas, pois não asseguram o que está estabelecido na Constituição nem regulamentam os direitos ali previstos, a fim de tornar a sociedade mais equilibrada.
O que se percebe, de forma clara, é que tudo isto atua para impor a permanência das elites coronelistas no poder, de modo a impedir qualquer transformação que conduza verdadeiramente ao fim das desigualdades sociais.
JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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