Por Luiz Antonio Simas

O sinistro Flamengo X Bangu de quinta (18) me faz retomar algumas coisas que andei escrevendo sobre futebol. Vou contextualizar. No dia 15/4/1989, 96 torcedores morreram e 766 ficaram feridos durante o jogo entre Liverpool e Nothingan Forest, pelas semifinais da Copa da Inglaterra.

A catástrofe – a maior do futebol inglês – estimulou o governo da Primeira-Ministra Margareth Thatcher a atacar o ‘hooliganismo’. Um primeiro relatório do governo sobre a tragédia atribuiu a culpa aos torcedores do Liverpool, que abusaram do álcool e da violência. Investigações posteriores desmentiram o primeiro relatório, que teria sido adulterado pelo governo, e comprovaram que a tragédia ocorreu em virtude da superlotação, das condições do estádio e de erros dos responsáveis pela segurança da partida, que abriram uma entrada durante o jogo com acesso a setores que já estavam superlotados, causando o esmagamento e o sufocamento de centenas de pessoas.

Naquele contexto, o governo de Thatcher vinha tentando desmontar o estado de bem-estar social e estava em guerra aberta contra os sindicatos de trabalhadores. Vários desses sindicatos tinham ligações com torcidas de futebol, desde as origens do jogo na Grã-Bretanha. No discurso do governo, praticamente todos os torcedores de futebol foram genericamente definidos como hooligans.

O discurso de combate à violência, que de fato ocorria, ensejou, então, diversas mudanças no futebol da Inglaterra e na própria cultura do torcedor. Exigências passaram a ser feitas para melhorar o funcionamento dos estádios, da obrigatoriedade de lugares marcados para torcedores sentados à melhoria do acesso. O preço dos ingressos aumentou de forma significativa, afastando o torcedor de baixa renda das novas arenas; em um processo de gentrificação evidente do futebol britânico. O professor Alvito (UFF) descreve esse processo no ótimo livro ‘A Rainha de chuteiras’.

Ao mesmo tempo em que o processo de assepsia ganhava terreno, os principais clubes do país romperam com a Football League e criaram a Premier League, buscando de imediato autonomia para negociar a transmissão de jogos para a televisão e os contratos de patrocínio. A cereja do bolo foi o acordo com o magnata das telecomunicações Rupert Murdoch e o contrato para que a Sky TV assumisse a transmissão dos jogos.

Se o dinheiro do contrato trouxe recursos até então inimagináveis para os clubes ingleses, por outro lado veio acompanhado de estratégias cada vez mais ancoradas em um princípio: o futebol deve ser cada vez mais moldado à lógica da televisão, inclusive em relação às características do jogo.

A cobertura da TV, com ângulos de câmera inusitados, técnicas de repetição constante de jogadas, exploração de imagens ressaltando o contato físico entre os jogadores, redução do tamanho do campo para reforçar esse contato, jogos praticamente todos os dias para atingir a demanda dos assinantes; escancara a estratégia que norteia a nova era do futebol inglês: a assepsia dos estádios, transformados em arenas multiuso, restringirá o público presente a uma parcela com poder aquisitivo maior. O torcedor da nova ordem do futebol deve estar na frente da televisão. Dentro das arenas devem estar os consumidores do ‘produto futebol’, conforme o jargão empresarial.

O governo Thatcher atacou o futebol com objetivos mais profundos, ligados a disciplinarização e contenção das massas urbanas, confrontos com os sindicatos de trabalhadores, sufocamento de movimentos de resistência ao desmonte do estado de bem-estar social no Reino Unido, ataque e criminalização a qualquer tipo de organização capaz de ensejar laços de sociabilidade, se apropriar de espaços públicos e construir redes de proteção entre os mais pobres, etc.

O processo de aburguesamento do futebol, visto cada vez mais como negócio pelos novos ‘donos do jogo’, não é, portanto, um fenômeno isolado de dimensões mais amplas e está diretamente ligado a processos de disputas, tensionamentos e confrontos típicos de cidades capitalistas (sugiro aqui a leitura dos textos fundamentais do professor Gilmar Mascarenhas, o cara que entendeu melhor tudo isso).

Pensemos nisso e no que o futebol brasileiro está se transformando: um jogo elitizado, em estádios/arenas “mcdonaldizados”, priorizando o pay-per-view, as redes sociais, a infantilização da crônica esportiva, o culto às celebridades de ocasião, os almofadinhas do mercado.

Trata-se de um processo mais amplo de ‘arenização’ do cotidiano e afastamento das camadas populares dos elementos lúdicos que permitiram a apropriação da cidade pelos subalternizados que, nas gerais e arquibancadas, construíram formas de reinventar, no precário, a vida.

Nós estamos assistindo ao assassinato da cultura do futebol brasileiro, ao esfarelamento das ligações afetivas entre clube e torcedor, com a entrega do jogo ao falcões do mercado, que mensuram o futebol apenas a partir de cifrões e engenharias financeiras. Essas aves de rapina ainda querem propor a falsa oposição entre “profissionalismo” e ‘jogo popular’. Uma gestão profissional não é incompatível com medidas que defendam o torcedor, a popularização do jogo e dos estádios.

O projeto é esse. Que morram clubes menores, que se esfacelem laços de sociabilidade que o futebol gera. Em maior amplitude, temos um sintoma da precarização absoluta da vida. O Flamengo X Bangu de ontem foi a cara do Brasil atual: uma barganha com o governo, um empreendimento do mercado às custas da naturalização da morte.


LUIZ ANTONIO SIMAS é escritor, professor e historiador, compositor brasileiro e babalaô no culto de Ifá. Professor de História no ensino médio, é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Texto publicado originalmente no Facebook

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