Por Miranda Sá –
“Entre velhas páginas uma folha ainda verde da casa antiga” (Alice Ruiz)
No ano de 1960 eu trabalhava no Correio da Manhã, o primeiro grande jornal em que atuei profissionalmente, e, como era madrugador, estava sozinho na redação quando apareceu um cidadão pedindo para falar com o chefe.
Conversa vai, conversa vem, a figura queria levar para Campina Grande, na Paraíba, um jornalista para dirigir um jornal local que transformaria a circulação semanal em diária; desejoso de participar deste desafio, antes de levar o campinense no aquário do chefe (que era meu primo) fui antes, e pedi-lhe para me indicar…
Não deu outra. Foi sopa no mel; o proprietário da publicação já tinha gostado da minha conversa e aceitou de bom grado a indicação.
Na Campina Grande regurgitante de progresso e vibrante movimentação econômica e cultural, encontrei um bar chamado Alfarrábio; era uma casa velha, com as paredes descoloridas e emboloradas, que acumulava como atividade comercial a venda de livros usados, de frutas e servir cachaça e cerveja (não muito gelada, como gostava o saudoso poeta Raimundo Asfora).
Perdoe-me, se ainda estiver entre nós, por não lembrar quem a pessoa me levou lá pela primeira vez; mas recordo que convivi ali com os jovens intelectuais Agnelo Amorim, Figueiredo Agra, Orlando Tejo, o jornalista Wallace Figueiredo e os estudantes Alcir Góes e Emílio Bezerra.
Vivi uma encantadora convivência no Alfarrábio, onde o papo era livre e agradável, e a gente se divertia quando apareciam comerciantes e políticos com a desculpa de levar para casa laranjas, maçãs e peras (um luxo na época) e aproveitavam a oportunidade para tomar umas e outras…
O curioso e inteligente nome do estabelecimento caía bem. Quando menino, pouco ouvia citar-se a palavra “alfarrábio”, que foi para a UTI da gramática e, ao que parece morreu, ficando no dicionário como elogio fúnebre: substantivo masculino originário do árabe, Al-Farābi, significando livro antigo ou há muito editado, cujo valor muitas vezes reside somente pela antiguidade.
Além de significar também sebos e lojas de nostalgia, Alfarrábio foi pluralizado pelo famoso escritor brasileiro José de Alencar, que intitulou “Alfarrábios” sua trilogia de romances históricos, seriada como “O Garatuja”, “O Ermitão da Glória” e “Alma de Lázaro”, crônicas dos tempos coloniais publicadas em 1873.
Às vezes fico conjecturando se uma visita a casos e fatos políticos ocorridos no século passado seriam alfarrábios…. Para mim ainda estão muito próximos, eu que cobri jornalisticamente a Câmara dos Deputados ainda no Rio, na Praça XV, e depois o Senado Federal sediado no Palácio Monroe, um belo monumento arquitetônico demolido estupidamente em 1976. Em nome do “progresso”…
No Rio de Janeiro antes da mudança da capital, era o espelho social e político do Brasil e viveu, sem dúvida alguma, os seus “anos dourados” na década de 1950, com uma efervescência generalizada, e a consequente evolução comportamental dos brasileiros, pelos avanços na ciência, na cultura e a implantação da tecnologia moderna, com a popularização da televisão e dos automóveis nacionais.
O lado triste, no começo da década – a derrota para o Uruguai no recém-inaugurado Maracanã – foi logo esquecido. Eleito para a presidência da República, Getúlio Vargas, criou a Petrobras, à época uma aspiração do povo brasileiro.
Tivemos a eleição de Juscelino Kubitschek e com ele uma era democrática e alegre, com paz e esperanças no futuro, coincidindo com o sucesso do rock e da nossa “Bossa Nova” tendo como pioneiros Tom Jobim, Vinícius de Morais e João Gilberto.
Essa alegria foi conturbada pela até hoje inexplicável renúncia de Jânio Quadros, sucessor de JK, o movimento militar legalista que garantiu a posse de João Goulart e depois outro movimento também militar, a derrubada do Presidente. E assim tivemos a implantação de um regime que suprimiu a liberdade.
Pena que ainda haja hoje um grupo extremista querendo a volta do regime de exceção como se fora um destino nacional, fechando-se o Congresso e o STF. Isto é, porém, impensável pois significaria o fim do Estado de Direito.
Pensando assim, estão errados e podem ser castigados… Encontrei num Alfarrábio a história que mostra o Destino com mão e contramão… Como todos sabem, o filósofo grego pré-socrático, Zenon de Eleia, ensinava que a humanidade era subordinada a um Destino inevitável.
Certa vez flagrou um dos seus servos roubando, e o ladrão, malandro, se justificou dizendo que o destino lhe determinou que furtasse…. Zenon ouviu-o e disse: – “Tens razão, o Destino quis que roubasses e depois fosses surrado”. E mandou aplicar-lhe umas bordoadas.
MIRANDA SÁ – Jornalista, blogueiro e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do país como a Editora Abril, as Organizações Globo e o Jornal Correio da Manhã. Recebeu dezenas de prêmios em função da sua atividade na imprensa, como o Esso e o Profissionais do Ano, da Rede Globo.
MAZOLA
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