Redação

De Norte a Sul do país, governadores e prefeitos estão reabrindo a economia antes da hora, alertam especialistas que têm se dedicado ao estudo da covid-19. A flexibilização das medidas de contenção e isolamento social neste momento, em que a curva de infecção ainda está em ascensão, deve acelerar a disseminação do coronavírus e confirmar as piores previsões para a pandemia.

“Entre junho e final de julho, pode-se chegar a 80 mil óbitos, até 100 mil óbitos”, avaliou o infectologista Julio Croda, ex-diretor de imunização e doenças transmissíveis do Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta. Ao Congresso em Foco, Croda disse que os estados estão flexibilizando sem indicadores epidemiológicos, científicos e técnicos que apontem que é o melhor momento.

Croda, que é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), prevê que nesta semana o Brasil alcance o maior número de casos diários, o que indica a velocidade de transmissão do vírus, e também de óbitos por dia. Nesta terça-feira (02), o Brasil deve atingir a marca de 30 mil mortes pela covid-19.

Distanciamento ‘à brasileira

Especialistas avaliam que o distanciamento brasileiro não foi feito com o mesmo rigor de países europeus. O isolamento “à brasileira” pode levar a rebotes e, após a reabertura, é provável que os estados não consigam aumentar a capacidade de atendimento de leitos de UTI. No país, as taxas de isolamento chegaram a algo em torno de 45% a 50% e a taxa de contágio nunca esteve abaixo de 1 – momento que indica a regressão da pandemia.

Para o infectologista José Davi Urbaez, diretor da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, as autoridades estão se precipitando na decisão de reabrir a economia. “Qualquer pessoa com uma formação responsável vai dizer que não é o momento para reabertura. Não está tendo diminuição da curva nem oferta de testagem de forma potente, diária”, disse Urbaez.

Pressionado, o governador Ibaneis Rocha (MDB) cedeu a apelos de empresários e está reabrindo a economia do Distrito Federal. Segundo Urbaez, ainda que o DF  tenha baixa taxa de subnotificação e disponha de uma das melhores vigilâncias epidemiológicas do país, é precoce falar em reabertura. “Esse é o grande paradoxo: entender que o sistema ainda não está saturado não significa que você possa abrir para saturar”, disse Urbaez.

Estado brasileiro com maior número de mortos pela covid-19 por 100 mil habitantes, o Amazonas iniciou na segunda-feira (1º) a primeira fase do plano do governo estadual para reabertura. Os seguintes estabelecimentos foram reabertos: igrejas e templos, joalherias e relojoarias, serviços de publicidade e afins, floriculturas e bancas de revista.

São Paulo, estado mais afetado do país em termos absolutos, também iniciou na segunda-feira seu plano de desconfinamento. O plano é composto por cinco fases e prevê uma série de indicadores para a flexibilização gradual. Entre as medidas que deverão ser observadas nesse processo de reabertura estão o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento em áreas públicas.

A maioria dos países observa os seguintes indicadores epidemiológicos antes de promover uma flexibilização: pelo menos 14 dias seguidos de queda no número de casos; taxa de ocupação de UTI menor que 80% por 7 dias; e testagem em quantidade adequada (de preferência RT-PCR e suficiente para profissionais de saúde) combinada com um isolamento eficaz.

O infectologista Julio Croda observa que algumas cidades, especialmente do Norte e do Nordeste, estão tendo um platô, com manutenção do número de

casos. Mas ainda não há nenhuma possibilidade de queda por 14 dias, que é o ciclo do contágio da covid-19. Apesar da possibilidade de uma segunda onda epidêmica na reabertura, o médico acredita que na região Norte e em algumas cidades do Nordeste, já houve circulação ampla do vírus e as perspectivas podem ser mais otimistas do que para o centro-sul do país.

Outro ponto defendido por Croda é a adoção de uma estratégia por macrorregião. “Tem que ver como cada estado organiza a regulação dos leitos de UTI e as medidas devem ser regionalizadas de acordo com a disponibilidade desses leitos. O isolamento, o distanciamento e a flexibilização devem ser feitos de acordo com a macrorregião e não pensando em cidades isoladamente, porque 80% das cidades do Brasil têm menos de 20 mil habitantes e a maioria não tem leitos de terapia intensiva”, afirmou.

A atenção às particularidades regionais também é defendida pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Segundo o Estadão, a diretora da entidade, Carissa Etienne, advertiu hoje para o risco de uma reabertura econômica precipitada após as quarentenas, já que isso pode provocar uma segunda onda de casos da covid-19 que “apagaria a vantagem conseguida nos últimos poucos meses”.

Durante entrevista coletiva virtual com autoridades da agência de saúde que é o braço regional da Organização Mundial de Saúde (OMS), Etienne pediu às autoridades que “pensem duas vezes antes de retirar medidas de distanciamento social”, mas também que levem em conta particularidades de cada região nessa estratégia.

Política em detrimento da ciência

Croda, que deixou o Ministério da Saúde em 25 de março, avalia que faltam políticas não só na área de saúde mas também de economia para combater a pandemia. “Os governos de outros países estão fazendo programas extremamente sólidos em termos de investimentos, retirando dinheiro da sua reserva para estimular a economia, para manter principalmente médias e pequenas empresas.”

O infectologista criticou a ausência de um plano adequado de distanciamento a nível federal. “Até hoje não existe uma matriz com critérios técnicos-científicos para tanto aumentar o distanciamento quanto flexibilizar”, avaliou. Ele acredita que o governo federal deveria coordenar as respostas à pandemia, visto que governadores e prefeitos sofrem muitas pressões a nível local e possuem fragilidades de gestão.

“Cada estado está adotando um plano estratégico diferenciado. Falta um comando técnico mais adequado a nível federal”. Croda atribui a falta de ações programáticas a decisões políticas tomadas pela Presidência da República, que não apoia nem leva em consideração as visões técnicas.

O infectologista avalia que o insucesso na resposta à covid-19 encontra respaldo na ingerência política. “A questão política prevaleceu, como vem prevalecendo até hoje, em detrimento da questão técnica. Não adianta você ter equipe técnica, ter tempo, se você não tem ambiente político adequado para executar o que deveria ser feito do ponto de vista técnico”, disse Croda. O primeiro caso detectado no Brasil foi em 26 de fevereiro, o que deu ao país um tempo de planejamento.

Com a chegada do general Eduardo Pazuello ao Ministério da Saúde, houve uma reestruturação na pasta. Boa parte do corpo técnico, entre eles os secretários João Gabbardo e Wanderson de Oliveira, deixou a pasta e foi substituído por militares sem experiência na área de saúde. A mudança gerou críticas de uma suposta tutela militar.

Condições para flexibilização

Pesquisadores do grupo PrEpidemia, da Universidade de Brasília (UnB), alertam que os governos locais devem se atentar a algumas medidas antes de promover a flexibilização. Em primeiro lugar, deve-se assegurar a disponibilidade de infraestrutura hospitalar, com as devidas margens de segurança, a fim de evitar mais óbitos por falta de atendimento médico adequado, tanto para pacientes com covid-19, como para atendimento de outras enfermidades.

Outro ponto-chave segundo os especialistas é o investimento em inteligência epidemiológica para compreender os meios de contaminação cujo controle precisa ser aprimorado. Isso pode ser feito entrevistando-se os contaminados recentes para identificar os possíveis locais de contaminação.

Em terceiro lugar está a necessidade de investimento na inteligência geográfica como instrumento de análise e apoio na compreensão da dispersão da contaminação por região. Esses dados podem gerar protocolos regionais de ação e previsão, vinculando às disponibilidades hospitalares e a previsão de necessidades futuras.

Para ler a íntegra do último boletim dos pesquisadores da UnB, acesse aqui.


Fonte: Congresso em Foco