Por Jorge Folena –

No sábado, dia 2 de outubro, milhares de brasileiros em todo o país foram às ruas protestar contra um governo cruel, desumano, que impõe ao povo uma das piores crises humanitárias, agravada pela carestia, pelo desemprego em massa e pelo total descuido governamental em relação à Covid-19, que, infelizmente, já matou mais de seiscentos mil brasileiros.

Por tudo isto, é importante lembrarmos que, na próxima terça feira, dia 5 de outubro, a Constituição de 1988 completará 33 anos de sua promulgação.

Nestas mais de três décadas o texto original foi atacado por neoliberais, como ocorreu no governo de Fernando Henrique Cardoso, que, entre outras ações de desmonte do estado brasileiro, impôs o fim do monopólio do petróleo da Petrobras, que foi um símbolo de luta no país, e entregou a empresa ao mercado financeiro internacional, que hoje a utiliza para explorar o povo brasileiro, que não tem mais como pagar pelo preço dos combustíveis e do gás de cozinha, apesar de o Brasil ser um dos maiores produtores mundiais de petróleo.

Ao longo deste período, a Constituição também perdeu muito da sua eficácia, mas tudo piorou ainda mais a partir do momento em que a classe dominante brasileira, em 2016, rompeu com a ordem democrática para indevidamente afastar do governo a presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher a governar o país.

Foi um golpe cruel contra a Constituição, que abriu espaço para a chegada ao poder de um governo que defende a tortura e os ideais fascistas, que, a todo momento, incita ao ódio e ao preconceito contra a população mais vulnerável.

Assim, aproveito esta oportunidade para resgatar os fundamentos que originaram a nossa Carta Política, que a cada semana, e com ela em punho, buscamos defender nesta coluna.
O Dr. Ulisses Guimarães referiu-se, com razão, à Carta promulgada em 05 de outubro de 1988, como a Constituição Cidadã, aquela que veio para proteger o povo pobre e sofrido do Brasil, que vem sendo massacrado, humilhado e maltratado desde o descobrimento.

É o que se pode ver pela saga de luta permanente dos povos indígenas; dos negros de ascendência africana, sequestrados em sua terra para serem aqui escravizados por mais de trezentos e cinquenta anos; do caboclo da Amazônia; do nordestino retirante e sem terra; dos tantos milhões que hoje sobrevivem, de forma insalubre e sem proteção do Poder Público, nas favelas das grandes cidades brasileiras.

Como dito por outro Pai e Guardião da Constituição Cidadã, o correto e justo José Bernardo Cabral, os constituintes de 1987/1988 tiveram o cuidado de colocar na parte inicial do Texto Maior os princípios fundamentais da República e da garantia dos direitos do homem, inseridos nos artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º, em respeito ao povo brasileiro, anteriormente sempre colocado na parte final das constituições.

O povo brasileiro, como destacou o professor Darcy Ribeiro, é da luta diária pela sobrevivência e acorda, muitas vezes, às três ou quatro horas da manhã para trabalhar e, com sua força, construir este grande país; mas é desrespeitado pela elite nacional, que não reconhece o esforço desta gente negra, mestiça e pobre, que pouco ou quase nada recebe na distribuição das riquezas propiciadas pelo seu esforço e trabalho.

Darcy Ribeiro foi antropólogo, escritor e político brasileiro, conhecido por seu foco em relação aos indígenas e à educação no país. Suas ideias de identidade latino-americana influenciaram vários estudiosos latino-americanos posteriores. (Wikipédia)

A Constituição redigida pelo Dr. Ulisses, por Bernardo Cabral, Mário Covas, Florestan Fernandes, Beth Mendes, Benedita da Silva, e tantos outros constituintes, é aquela que veio para reparar o autoritarismo; e, mais do que isto, para dar cidadania a quem jamais a teve, aos que sempre lutaram por um pedacinho de terra para plantar e sobreviver com um mínimo de dignidade.

Ao contrário do que tentam incutir em nosso pensamento, visando acomodar e adormecer qualquer vestígio de rebeldia contra tantas injustiças, o passado do Brasil é marcado por lutas históricas do povo, cuja memória é em grande parte escondida pela elite do país, que, por meio da violência militar, massacrou populações indefesas, a exemplo do ocorrido na Guerra de Canudos (1896-1897), na Guerra do Contestado (1912-1916), no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1937) e, também, durante o regime autoritário de 1964-1985, em que se prosseguiu com o extermínio dos povos indígenas (iniciado desde o descobrimento), e durante o qual civis foram presos, torturados, desaparecidos e mortos.

Esse massacre continua nos dias de hoje, mediante os cortes indiscriminados de direitos sociais pelas chamadas “reformas”, que, na verdade, deformam a Constituição Cidadã; e prossegue na perseguição sem trégua à população negra, mestiça e pobre das favelas e periferias das cidades e do campo.

A Constituição de 1988 nasceu para abolir toda forma de autoritarismo e violência, representados pelas ditaduras do passado (1937-1945 e 1964-1985). Mas, infelizmente, esses males ainda se fazem presente, por conta do passado não resolvido, que consiste em evitar que se jogue luz sobre o extermínio dos povos indígenas e as mazelas da escravidão, entre outros.

A hipocrisia com que se busca apagar estes episódios trágicos da história brasileira se repete na indiferença demonstrada diariamente por uma sociedade apática, que não se indigna diante da crueldade dos milhares de assassinatos de jovens negros pobres, por ano, inclusive crianças; que não protesta diante da ausência de proteção do Estado, durante a grave crise sanitária da COVID-19, na qual, para um governo frio e desumano, morrer um ou um milhão dá no mesmo.

Descaso e descompromisso constituem as marcas características do olhar da classe dominante (e parcela da classe média) sobre a população, que foram registrados muitas vezes pela arte, como no poema “De frente pro crime”, do saudoso Aldir Blanc, em canção eternizada na voz de João Bosco: “está lá o corpo estendido no chão”.

Temos que dar um fim a tanta indiferença! Pois está mais do que na hora de se resgatar a força originária da Constituição para retomarmos a construção do Brasil, interrompida pelo impedimento de Dilma Rousseff, no lamentável episódio que deveria ter sido o “inexequível impeachment”, nas palavras de Orpheu dos Santos Salles.

É preciso entregar, efetivamente, o poder e a construção do país nas mãos do povo brasileiro, que está se defendendo como pode, e sem qualquer ajuda, dos males da pandemia e contra um governo que o ameaça, a todo momento, com repressão policial e militar.

Precisamos dizer basta a esse governo, que só concede favorecimentos para a elite parasita, que não trabalha nem permite a justa distribuição da riqueza produzida por todos, ao contrário do pretendido por Ulisses Guimarães, Bernardo Cabral e outros constituintes, que ao estabelecerem os princípios fundamentais da República, pretenderam assegurar que o povo brasileiro pudesse, enfim:

“Construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.


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