Por Fernando Schüler

Ainda agora a intolerância política resolveu banir mais uma leva de brasileiros. Um deles foi Nikolas Ferreira, o jovem deputado mais votado do país. Qual foi exatamente seu crime? Ele pediu que as investigações dos atos do dia 8 de janeiro envolvessem também autoridades federais. Dançou. Um deputado deveria ser inviolável em “palavras, opiniões e votos”, como diz a Constituição, para, inclusive, pedir as investigações que julgar devidas. No Brasil de hoje, foi calado.

A maioria ri. Outros dão de ombros. Ainda outros andam com medo. Essas coisas surgem sempre quando aceitamos que cabe ao Estado decidir sobre a verdade, quando entra em cena o delito de opinião e quando admitimos que os tribunais, que deveriam preservar a lei, ajam com “ousadia” diante da lei, como leio por aí.

MARTÍRIO DE CALAS – Há uma história que nos fala exatamente do quanto o respeito a princípios foi crucial no nascimento da moderna ideia da tolerância e dos direitos individuais. É a história de Voltaire e o martírio de Jean Calas, comerciante de Toulouse acusado de matar o próprio filho, em 1761.

Calas tinha 63 anos e era um protestante numa cidade marcada pelo fanatismo católico. A acusação era frágil, mas ele foi condenado ao suplício e à morte. Cada parte de seu corpo foi quebrada. Enfiaram um funil na sua garganta, por onde despejaram 17 litros de água.

Depois o colocaram na roda, onde foi esticado até arrebentar. A tudo ele suportou repetindo que era inocente. Sua obstinação tocou a alma de Voltaire. Ele viu naquilo toda a barbárie do século, mas também a chama da dignidade individual. Convencido da inocência dele, Voltaire torna para si uma questão de honra a reabilitação da memória de Jean Calas.

VOLTAIRE INSISTE – O que encanta nesse episódio trágico é a atitude “absurda” de Voltaire. Voltaire era um homem consagrado, havia acabado de publicar o “Cândido,” e andava prestes a inaugurar seu Castelo de Ferney. E nem sequer conhecia Jean Calas. Apesar disso, por dois anos, se dedicou à reabertura do caso simplesmente em obediência a um princípio. Por fim conseguiu.

Em março de 1765, três anos depois do suplício, os juízes de Paris revisaram a condenação, e a viúva de Calas foi recebida em Versalhes por Luis XV. Na sequência, Voltaire escreve seu “Tratado sobre a Tolerância”.

Afirma princípios simples e até hoje válidos: a ideia de que todos merecem um julgamento justo, que a tolerância é a via possível para vivermos em paz e prosperar. E que é preciso superar o fanatismo, essa “sombria superstição que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer um que não pense como elas”.

PAIXÃO PÚBLICA – A política hoje substituiu a religião, como a paixão pública. A mensagem de Voltaire permanece: abrindo mão de certos princípios, só nos resta o universo incerto dos instintos, de nossas preferências e juízos precários sobre o bem e o mal. Se no Brasil de hoje achincalhamos um jornalista por defender a liberdade de expressão e o direito ao devido processo, é porque estamos com um problema.

Se aceitamos passivamente a volta da censura prévia, o banimento de jornalistas e deputados da internet, ou coisas ainda piores, como o bloqueio de contas bancárias, pressão econômica, censura a emissoras e mesmo a prisão por delito de opinião, é porque estamos com um problema bastante complicado. Algo que não será resolvido por uma razão instrumental, que diz “é preciso esticar um pouco a Constituição porque há um inimigo a ser derrotado”.

Lembrar de Voltaire é fazer o percurso inverso, que nos vincula a certos princípios feitos precisamente para frear nossos instintos. Princípios que não são “americanos”, mas que estão todos lá, na Constituição e nas leis brasileiras, cujo respeito é a única via possível para reconciliar este país que por vezes mal conseguimos reconhecer.

Como Voltaire se aproveitou de falha nas regras da 1ª loteria da França para ganhar uma fortuna - BBC News Brasil

Fernando Luís Schüler é filósofo, professor universitário, articulista e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura e ciências políticas. Schuler foi Secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e diretor do Insper, no Rio de Janeiro.

Publicado inicialmente na revista Veja. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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