Por Isabela Callegari –
Este artigo foi iniciado quando o pacote de ajuste fiscal do governo foi primeiramente anunciado, em 29 de novembro. Tendo em conta o caráter amplo e nocivo das medidas propostas, entende-se que essas deveriam ser estudadas e debatidas com calma. No entanto, a urgência com que foram votadas foi tanta, que envio essas linhas para a publicação já após a sua aprovação, às vésperas do Natal. Nos grupos de militância à esquerda, ficou evidente que trabalhadoras e trabalhadores tampouco tiveram tempo de se inteirar dos projetos de lei e de entender o que estava acontecendo, sendo que muitos apenas se afiançaram nas afirmações de representantes do governo, no qual confiam. À exceção de poucas pessoas, a maioria supôs impossível que o governo Lula estivesse propondo a precarização de parte da população mais vulnerável do país. Aponto, portanto, de saída, a primeira característica antidemocrática e antipopular dessa situação, o regime de urgência e a negação pública por membros do governo de aspectos factuais daquilo que o próprio governo apresentou.
O pacote, apresentado pelo Ministério da Fazenda e materializado em dois Projetos de Lei, de autoria do líder do governo na Câmara, José Guimarães, o PL 4.614/24 e o PLP 210/24, posteriormente inseridas na PEC 45/24, desenharam um cenário desolador e politicamente injustificável para o governo petista, pelo seu impacto sobre trabalhadoras/es e, especialmente, sobre pessoas com deficiência e idosas/os em situação de pobreza, e pessoas cuidadoras, majoritariamente mulheres. Demagogias à parte, na prática, figuras como Michelle Bolsonaro, Bia Kicis, Nikolas Ferreira, Damares Alves, Sergio Moro, e outras/os à direita, responderam às pressões de suas bases eleitorais e se mobilizaram para atenuar e barrar o ajuste, a despeito de serem representantes de frações da burguesia e costumeiros defensores da austeridade fiscal.
Assim, está explicitado que a pressão para o ajuste não veio do Congresso, pelo contrário. Na verdade, a situação tomou contornos de surrealidade quando o governo liberou as pressas mais de R$8 bilhões adicionais em Emendas Parlamentares – chegando à cifra recorde de R$40 bilhões e adicionando ao escândalo da captura de recursos públicos e de um parlamentarismo implícito -, para que o Congresso aprovasse o pacote de precarização da classe trabalhadora. Portanto, para avaliarmos precisamente a atuação do governo, temos que examinar as medidas que foram por ele propostas e qual o seu impacto concreto sobre a população, além de nos perguntarmos o que é, de fato, o tal “Mercado”, e qual é a pressão que ele é, efetivamente, capaz de exercer, à luz da teoria macroeconômica e do entendimento do sistema monetário.
Primeiramente, observa-se na tabela abaixo, divulgada pelo Ministério da Fazenda, que a ideia era economizar R$17,2 bilhões em 2025 e R$239,8 bilhões até 2030 cortando gastos sociais de extrema relevância para a maioria da população (abono salarial, Fundeb, Desvinculação de Receitas da União, salário mínimo, Bolsa Família, BPC e atualização de cadastro por biometria), para não dizer da tentativa de cortes no Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) – que caiu na redação final da PEC -, da retenção de recursos a projetos culturais da Lei Aldir Blanc, e destinados a provimento e criação de cargos públicos.
Sobre o ataque e suas principais consequências
A prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) seguirá suprimindo o que seria destinado à assistência social, previdência, educação e saúde, para atender a gastos financeiros, bem como, a limitação de recursos federais ao Fundeb deixa o orçamento da educação mais dependente de estados e municípios, que sofrem, eles sim, graves restrições fiscais reais. Por sua vez, os dois maiores programas sociais brasileiros, BPC e Bolsa Família, juntos atendem aproximadamente 56 milhões de beneficiários, enquanto 724 mil pessoas têm direito ao abono salarial e a renda média de toda a população é afetada pela valorização do salário mínimo, uma vez que a ele estão vinculados programas sociais, aposentadorias e salários. Estimativas indicam que se a regra proposta para a valorização real do salário mínimo, de no máximo 2,5%, estivesse vigorando desde 2003, o salário mínimo seria hoje ao menos 25% menor. Isto é, o equivalente a menos de R$1.000.
Muitos buscaram argumentar que o pacote anunciado se trataria apenas de um “pente fino”. Cabe salientar que isso já seria muito grave, quando feito sem a busca ativa de beneficiários, constituindo uma política típica de governos à direita, que com argumento de adequação técnica, na prática cortam o benefício das pessoas mais vulneráveis, incapazes de se adaptar às exigências. Lembro da experiência pessoal de, em 2017, estar trabalhando em uma ocupação e ver justamente as pessoas que eram analfabetas, que não tinham acesso à internet, ou com graves problemas de saúde, terem seus benefícios cortados, pelo “pente fino” no Bolsa Família promovido pelo governo Temer, ao mesmo tempo em que rareavam assistentes sociais no local, também devido aos cortes de gastos.
Ou seja, qualquer exigência de recadastramento para o recebimento de benefícios, sem o acompanhamento e responsabilização da assistência social governamental, acarreta perda de renda e direitos para quem mora nos rincões do país, em área rurais, em terras indígenas, tem pouco acesso às notícias, baixa conectividade, problemas de locomoção, está internado, doente, tem deficiência ou é analfabeto/a. E esse ataque brutal é comemorado como se estivesse sendo promovida a justiça fiscal e a moralidade contra fraudadores. O Bolsa Família, por sua vez, vai também ser subjugado a um pente fino feito por um limite percentual de famílias constituídas de apenas uma pessoa (famílias unipessoais) por município.
Agora, vejamos aquilo que muitos negaram, as mudanças de critérios que foram propostas, para além desse corte com aparência técnica. A começar pelo abono salarial. O benefício anual, hoje recebido por trabalhadores formais que ganham até 2 salários mínimos (R$2.640), vai ter o limite de renda congelado no valor de hoje, até chegar em 1,5 salário mínimo, sendo que a valorização do salário mínimo também foi restringida. Isto é, a economia para o governo vai se dar na medida em que pessoas que hoje recebem o abono deixarão de receber nos próximos anos. A apresentação do Ministério da Fazenda justifica a medida alegando que trabalhadores/as formais que ganham até 2 salários mínimos estão sendo privilegiados, uma vez que sua renda é equivalente a 85% do salário médio dos trabalhadores brasileiros e que 60% dos trabalhadores formais hoje têm direito a esse benefício. Com isso, ao invés de reconhecer que o salário médio da população em geral é muito baixo, os beneficiários é que foram entendidos pelo governo como o problema a ser corrigido.
Em seguida, o ponto considerado o mais grave, o das mudanças de critérios para o recebimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Inicialmente, como consta da apresentação do Ministério e dos projetos de lei apresentados, houve a proposta inédita de que fosse incluída a renda de “cônjuge ou companheiro não coabitante” no cálculo de renda per capita. Para não falar da incerteza de como seria definida essa categoria, é simplesmente absurdo, em um contexto de alarmante violência masculina, feminicídios diários e abandono paterno em ascensão, sugerir a inclusão da renda de alguém que não mora na mesma casa e que pode ser um pai ausente, que não paga pensão, ou um homem violento, do qual a mulher está fugindo, no cálculo da renda para que ela acesse o benefício. Além disso, a proposta inicial também previa que fosse contabilizada a renda de parentes que não vivem sob o mesmo teto, caso esses ajudassem financeiramente o/a requerente do benefício, sem que ficassem eles mesmos com renda inferior a um salário mínimo. Tais propostas representavam uma afronta à segurança e à dignidade das mulheres e de pessoas em situação de pobreza, e felizmente foram derrotadas no Congresso.
Houve ainda a tentativa de mudar a definição de pessoa com deficiência, estabelecida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência como “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” para que o benefício abarcasse apenas as pessoas com deficiências graves, definidas como aquelas “incapacitadas para a vida independente e para o trabalho”. Essa ofensiva capacitista foi denunciada pela grande mobilização da comunidade de pessoas com deficiência e, justiça seja feita, pela forte atuação de parlamentares ligados/as a essa base, com destaque para Damares (Republicanos) e Mara Gabrilli (PSD), nas discussões internas e públicas.
Finalmente, o projeto enviado pelo governo previa a revisão da Lei nº 8.742, para que não fosse mais permitido o acúmulo de benefícios na mesma família e a dedução de valores com medicamentos, tratamentos e alimentação especial, algo que foi conquistado durante a pandemia, no governo Bolsonaro, expresso na Lei nº 13.982, de 2020. Caso aprovado na sua forma inicial, o projeto reduziria pela metade a renda de uma família composta por dois idosos ou um idoso e uma pessoa com deficiência, que tivessem apenas os benefícios como renda. Esse ponto foi severamente criticado e alterado na redação final. Ainda assim, passou a ser incluída a renda de todos os coabitantes, como irmãos/ãs e enteados/as, mudando a definição atual e, portanto, dificultando o acesso ao benefício.
Tanto o acesso ao BPC foi dificultado, que mesmo após todas as mudanças, a bancada do PSOL orientou voto contrário, e parlamentares do próprio PT, como Erika Kokay, votaram contra, admitindo que o projeto prejudica pessoas com deficiência e restringe a valorização do salário mínimo. Ainda assim, agora a PEC está aprovada e é lamentável que dias antes os mesmos parlamentares à esquerda estivessem alegando ser “fake news” que o projeto afetava pessoas vulneráveis e prejudicava o salário mínimo. Foi graças a essas manifestações públicas que a base de trabalhadoras e trabalhadores não se mobilizou e optou por defender o governo, de modo que a PEC, ainda que com melhorias, foi aprovada.
Outras figuras expressivas na esquerda, como Lindbergh Farias, Randolfe Rodrigues, Jandira Feghali e Maria do Rosário votaram a favor do projeto, ou se abstiveram da votação e não comentaram nada publicamente, como Erika Hilton. Dessa forma, o governo deu a oportunidade para que a direita argumentasse não ser aceitável que o corte de gastos se torne um corte de gente, como disse Sergio Moro (União), ou que o ajuste deveria vir de quem pode contribuir mais, não da parte mais frágil da sociedade, como disse Rogério Marinho (PL). Após as mobilizações, o líder do PT, Jacques Wagner, disse que o governo irá vetar a modificação do critério de pessoa com deficiência e o cancelamento do benefício por desatualização de cadastro.
Pessoas com deficiência e mulheres cuidadoras
As pessoas com deficiência, assim como mães de pessoas com deficiência, tendem a estar organizadas em associações que buscam a judicialização ou doações para acessar medicamentos, terapias, cirurgias e direitos básicos, sendo que vereadores e parlamentares, bem como grupos de caridade à direita, costumam estar mais próximos dessa comunidade do que a esquerda. Isso é um fato observável. Portanto, a esquerda não apenas promove um ataque desumano como também adota uma linha politicamente irracional. Em vez de se aproximar dessa comunidade, se distancia mais ainda dela, paradoxalmente, pouco após aprovar o Projeto Nacional de Cuidados. De nada adianta estabelecer grandes diretrizes, teoricamente embasadas no anticapacitismo e no feminismo, se na luta concreta pelo orçamento, pelo acesso a bens e serviços, e frente às diferentes capacidades, as pessoas são deixadas à própria sorte, a depender de advogados e doações.
Por estarem sujeitas ao trabalho de cuidados não remunerado, as mulheres têm menos tempo disponível e logo, menos acesso ao mercado de trabalho e menor renda. Igualmente, têm mais dificuldade em contribuir com a previdência, de forma que sua aposentadoria, em situação de baixa renda, costuma ser o BPC. Ainda, sendo as grandes cuidadoras compulsórias da sociedade, quando é necessário o cuidado permanente, as mulheres passam a viver do BPC de outra pessoa. Ou seja, estamos falando não apenas de uma pessoa em situação de pobreza, o que já seria terrível, mas sim, de duas pessoas pobres, que se encontram impossibilitadas de trabalhar, uma por necessitar de cuidados e outra por estar cuidando. Portanto, o critério de renda é indiferente às diversas capacidades físicas e às desigualdades de tempo disponível para o trabalho remunerado.
Em casos de crianças com deficiência intelectual, doenças raras ou deficiências graves, as poucas pesquisas que temos apontam para uma assustadora estatística de até 95% de abandono paterno, ficando evidente os vieses machistas e capacitistas nos critérios de concessão do BPC (Callegari, 2021). Além disso, essas famílias incorrem em gastos extras com medicamentos, tratamentos, terapias, locomoção e itens de higiene. Por essas características, existem diversos Projetos de Lei, apresentados nos últimos anos, que na contramão do ajuste fiscal, buscam facilitar o acesso ao BPC para pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência e mulheres cuidadoras, que se conectam pelas associações e grupos de apoio, não esquecerão que tiveram seus poucos direitos ameaçados sob um governo de esquerda, e foi a atuação do Congresso que atenuou essa ameaça.
Sobre injustiças dentro do ajuste fiscal
Enquanto os cortes sobre os mais pobres serão imediatos, as medidas positivas anunciadas, como isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil, e a sobretaxação para quem ganha acima de R$ 50 mil, não são suficientes para atingir a progressividade necessária na renda, e ainda precisarão passar pelo Congresso, para que, caso aprovadas, vigorem somente em 2026. Ou seja, a tática de negociação parece ter sido liberar emendas para que o Congresso aprovasse um pacote contra os mais pobres, e a direita saísse como defensora da população, em vez de liberar emendas para promover mudanças estruturais no andar de cima, o que ao menos faria algum sentido no longo prazo.
Ao mesmo tempo, outros números são tão escandalosos que não podem mais ser escondidos. Como diversos analistas vêm apontando, temos aproximadamente R$1,7 trilhão perdidos anualmente em benefícios tributários, sonegação e juros da dívida, além de aproximadamente R$615 bilhões distribuídos a acionistas, por meio de lucros e dividendos, de forma totalmente isenta, enquanto trabalhadores pagam até 27,5% de imposto sobre seus salários. Poderia se argumentar que os cortes sobre o povo são uma demanda do Congresso para que aprove reformas estruturais, mas como vimos, tampouco o Congresso demandou os cortes, quanto se comprometeu com as reformas.
Quanto aos juros da dívida pública, temos a cifra assustadora de aproximadamente R$50 bilhões pagos aos detentores de títulos da dívida pública a cada 1% de aumento da taxa Selic, e para isso, basta uma canetada, a portas fechadas, do Copom (Comitê de Política Monetária), que não foi eleito por ninguém. Inclusive durante essa ofensiva contra o povo, o Comitê decidiu novamente subir em mais um ponto a taxa de juros, o que equivale a um gasto maior do que toda a economia que o governo pretendia com o ajuste em 2025. No entanto, a conta de juros não entra na meta fiscal, que fica ideologicamente restrita aos gastos não financeiros (gastos primários).
Agora, se é verdade que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, é um bolsonarista e tem explícitos conflitos de interesse, atuando em causa própria, é também verdade que o governo não fez nenhum movimento para rever a autonomia do Banco Central e mudar a sua presidência. Igualmente, não buscou alterar a meta de inflação, que nos primeiros governos petistas era significativamente menos dura, e que é determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – composto por Haddad, Simone Tebet e Campos Neto. Muito menos, houve esforço no sentido de questionar o sistema de metas de inflação em si, que é um instrumento ortodoxo destinado à subordinação da política fiscal e dos gastos sociais, e não ao controle inflacionário. Por fim, a indicação de Gabriel Galípolo para assumir a presidência do Banco Central não deveria ensejar otimismo, dado que ele divergiu muito pouco de Campos Neto nas decisões internas que promoveram o aumento constante da taxa Selic. Enquanto isso, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e até membros do setor financeiro e analistas insuspeitos de heterodoxia acharam injustificada e desmedida a subida na taxa.
A austeridade como uma mentira em si e o poder que o Mercado não tem
Então, em um breve resumo, a iniciativa do ajuste fiscal não partiu do Congresso. Pelo contrário, grande parte deste se mobilizou para atenuar a proposta ou simplesmente votou contra. Em segundo lugar, ainda que a proposta original, de mudanças extremas nos benefícios, não tenha sido aprovada, o governo já perdeu muito para 2026 no que depender da comunidade de pessoas beneficiárias de BPC e abono salarial, especialmente entre mães, pessoas com deficiência e idosos/as. E finalmente, frações da burguesia e do próprio setor financeiro criticaram a voracidade da política monetária, que vem sendo apoiada por Gabriel Galípolo, indicado pelo governo para o Banco Central. Portanto, aparentemente, o governo faz tudo para agradar a uma parcela muito específica da burguesia, de poucos e grandes atores financeiros, denominada Mercado. Mas qual é o real poder desses atores em termos de manipulação do câmbio e de determinação do gasto público?
Responder a essa pergunta parece ser algo fundamental se quisermos sair da armadilha contrafactual permanente de nunca saber o que poderia ter sido feito à esquerda, já que assumimos a premissa de que o Mercado nada permite. O que sim, já sabemos, é que governar concedendo ao setor financeiro, à mídia, aos militares, às igrejas e ao agronegócio tudo o que desejam não foi capaz de garantir mudanças estruturais em troca, e ao fim, resultou em um golpe – baseado, aliás, na falácia de responsabilidade fiscal. Decorre também de um raciocínio lógico que se o governo nada pode fazer, porque ao Mercado tudo pertence, quando um governo de direita estiver no poder, ele também será apenas um refém, e portanto, esquerda e direita seriam indiferentes. Ainda, se um governo de esquerda governa objetivamente à direita, e a população tende a aderir à ideologia neoliberal hegemônica, não temos como ser uma opção viável. Se essa tática e estratégia vêm nos levando à derrota permanente, parece imprescindível governar buscando mudanças estruturais, sem conceder aos atores financeiros mais poder do que de fato têm, mesmo dentro de um cenário reformista. Para tanto, é fundamental avaliarmos a pressão conjuntural sobre o câmbio e a pressão para ajuste fiscal, frente ao funcionamento do sistema monetário e financeiro.
É comum que situações de coordenação financeira para a manipulação cambial, principalmente na América Latina, remetam ao sentimento, de que algo incontrolável e insustentável está acontecendo, devido às nossas experiências históricas com espirais inflacionárias, crises cambiais e de dívida externa. Embora a mídia e a narrativa econômica ortodoxa sigam se utilizando desse sentimento, ele não tem lastro na realidade de um país sem dívida externa, com soberania monetária (ou seja, não dolarizado) e que tem câmbio flexível. Ainda que os grandes agentes do mercado financeiro (o Mercado) possam coordenar uma manipulação para intensificar momentaneamente a desvalorização – que o Real compartilha com outras moedas por fatores geopolíticos -, essa manipulação só pode ser sustentada por um curto período de tempo, uma vez que esses atores perdem dinheiro mantendo essa posição.
A dívida interna, por sua vez, é um ponto central, cuja natureza e dinâmica devem ser entendidas pelos movimentos sociais e pela população, para que não sejamos eternos prisioneiros de discursos mistificadores da realidade econômica. Os títulos da dívida interna, em países que emitem sua própria moeda, não são apenas uma contrapartida dessa criação de moeda, mas também e fundamentalmente, instrumentos de gerenciamento de liquidez (da quantidade de moeda na economia). Ou seja, os títulos da dívida são instrumento tanto de política fiscal quanto de política monetária. Portanto, são distintos de títulos de dívida externa em diversos sentidos. Por um lado, porque não podem simplesmente ser auditados, questionados e cancelados, já que são instrumentos que afetam toda a economia. Por outro, a dívida interna não é algo a ser quitado ou que corra risco de não ser pago, já que ela é denominada na moeda que o próprio governo emite.
Serrano e Pimentel (2017) mostram que países de moeda soberana sempre conseguem rolar sua dívida interna e se financiar, dado que mesmo que os agentes do mercado primário de títulos (no Brasil, atualmente, 12 dealers) não queiram comprar os títulos de longo prazo à taxa de juros oferecida, o mercado interbancário, onde o Banco Central atua diariamente, sempre irá operar com títulos da dívida pública de curto prazo, pois as instituições financeiras não vão perder dinheiro deixando suas reservas bancárias paradas de um dia para o outro.
Assim, o que ocorre é que caso o governo não venda seus títulos de longo prazo à taxa de juros desejada, ainda assim, o Tesouro realiza os gastos públicos normalmente, ampliando a oferta de moeda na economia. Essa ampliação de moeda resulta em aumento de reservas bancárias, que serão trocadas por títulos de curto prazo no mercado interbancário. O Banco Central, por sua vez, é obrigado a intervir no mercado interbancário, frente ao aumento ou à diminuição de reservas, comprando e vendendo títulos, para atingir a meta Selic. E para realizar essa atuação de política monetária, ele deve ter títulos do Tesouro em quantidade suficiente na sua carteira. Assim, o Tesouro sempre emite títulos para o Banco Central e o Banco Central sempre realiza um financiamento indireto ao Tesouro, ainda que o financiamento direto seja proibido por lei, como é o caso do Brasil.
Se o Banco Central não operasse dessa forma ou se os agentes financeiros realmente negassem títulos da dívida, inclusive os de curto prazo, o que aconteceria é que não seria atingida a meta Selic e não seria feita a gestão de política monetária. Isso contradiria a própria narrativa do Mercado, que privilegia tanto a gestão monetária e a importância da Selic. Fato é que no sistema monetário contemporâneo, em países de moeda soberana, a dívida interna é um instrumento de política macroeconômica, não tendo as mesmas características daquilo que denominamos dívida em outros contextos. Um título de dívida interna representa uma dívida no sentido de que ele é um compromisso do governo com a pessoa que o detém, porque, para gerir a quantidade de moeda na economia, o governo trocou título por moeda e prometeu devolver essa moeda, acrescida de juros, nas condições especificadas no título. Mas, diferentemente do que comumente se entende por dívida e do que são as outras dívidas, isso não significa que o setor privado emprestou ao governo e que sem novos empréstimos, o governo fica sem a sua própria moeda e pode vir a quebrar. Igualmente, não significa que é o setor privado quem determina a taxa de juros.
Sendo assim, é economicamente impossível que a dívida do governo se torne impagável ou um ativo inseguro, pois a dívida apenas deixaria de ser paga caso se optasse politicamente por isso, nunca por falta de recursos. Na prática, os agentes do Mercado, os mesmos que dizem que a dívida está insustentável, sabem disso, e sempre vão manter investimentos em títulos do governo, que são rentáveis e têm risco zero, sendo preferíveis a manter dinheiro parado. A pressão que fazem na mídia e, eventualmente, no mercado de títulos de longo prazo, é inteiramente política e visa aumentar juros e cortar gastos sociais para a vulnerabilização da classe trabalhadora, não melhorar indicadores financeiros abstratos do governo, para que a dívida se torne “segura”. Eles também sabem que o governo não precisa arrecadar impostos para pagar a dívida, a não ser que a própria regra fiscal estabeleça isso.
A partir desse entendimento, a Teoria da Moeda Moderna mostra que o fato de o governo não ter limites financeiros para a criação de moeda e para seu próprio financiamento, não significa que ele possa emitir moeda sem consequências reais na economia. Pelo contrário, a economia real deve ser a base para um planejamento de gastos públicos, já que o impacto dos gastos importa frente aos seus efeitos na sociedade e nos indicadores macroeconômicos, e não no resultado contábil do próprio governo. Os juros que incidem sobre os títulos, por sua vez, acarretam um problema real de concentração de renda, como vimos. Porém, uma vez que não é possível simplesmente auditar e cancelar a dívida interna, temos que pensar em outros meios de gerir a quantidade de moeda na economia que não sejam tão custosos. Muito provavelmente, a partir da maior estatização do setor bancário e de outras regras para o mercado interbancário.
Portanto, na ausência de um poder real imposto por uma moeda estrangeira, a austeridade é uma amarra ideológica, que recria o poder inexistente e o internaliza por meio da legislação fiscal. O papel das regras fiscais é mimetizar as constrições econômicas de países dolarizados ou endividados externamente, determinadas por órgãos multilaterais, como o FMI, por exemplo. Nesse sentido, o grande poder do mercado foi impor a ideia de tetos de gastos, que não existia nos primeiros governos petistas, e que foi acatada pelo Novo Arcabouço Fiscal. Sim, os agentes financeiros e a burguesia como um todo detêm o grande poder político de direcionar a mídia, pressionar e derrubar governos de diversas formas, inclusive quando a política econômica está a seu favor. No entanto, a ideologia atua para criar ilusões em espaços vazios de poder.
Assim, romper com a chantagem permanente da austeridade requer criar consciência popular a respeito do sistema monetário e financeiro. O poder que o Mercado não tem se concretiza pelo medo de enfrentá-lo.
Referências
CALLEGARI, Isabela. Justiça Fiscal e Gênero: o caso das mães de crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus. Red de Género y Comércio, dezembro de 2021.
DALTO, F. A. S. Governo sempre cria moeda quando gasta, não existe financiamento alternativo. Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD). Policy Note n. 3, outubro de 2021.
IFFD – Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento. Em Defesa de um Regime de Planejamento Fiscal. Nota Pública nº 1. 13 de março de 2023.
SERRANO, F. e PIMENTEL, K. Será que “acabou o dinheiro”? Financiamento do gasto público e taxa de juros num país de moeda soberana. Revista de Economia Contemporânea (REC), v. 21, n. 2, 2017, p. 1-29.
Fonte: https://isabelacallegari.com/2024/12/26/um-poder-que-o-mercado-nao-tem-concedido-pelo-governo/
Enviado por Siro Darlan de Oliveira – Rio de Janeiro (RJ). Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
Tribuna recomenda!
MAZOLA
Related posts
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo