Redação

Em tempos de punitivismo exacerbado e populismo penal, o criminalista Alberto Zacharias Toron protagonizou um dos grandes momentos da advocacia no último ano.

Sua vitória teve repercussão em outras esferas além da Justiça. Ganhou contornos sociais e virou tema de discussão de bares, em programas jornalísticos e nas redes sociais. Mas, sobretudo, preservou as garantias do réu no sistema penal.

Durante o julgamento de agravo regimental no HC 157.627,  Toron demonstrou que o réu tem o direito de se defender e de rebater todas as alegações com carga acusatória. Portanto, deve apresentar as alegações finais só depois do delator. E provou, ainda, que os direitos de seu cliente — o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine — foram violados. A tese do criminalista foi vencedora e a sentença do então juiz Sergio Moro anulada.

Sobre a vitória de Toron, se convencionou dizer que foi o primeiro grande golpe sofrido pelo consórcio formado a partir da 13ª Vara Federal em Curitiba. Para o criminalista, no entanto, o ponto mais marcante do caso foi a defesa do Habeas Corpus como instrumento de controle do devido processo legal.

Em entrevista à ConJur, além de falar sobre o caso, Toron prevê que o punitivismo pode se tornar ainda mais intenso no país e diz acreditar que o ex-presidente Lula foi vítima de lawfaretese defendida pelo advogado Cristiano Zanin.

Leia abaixo entrevista:

ConJur — O pêndulo da Justiça brasileira atingiu o ápice do punitivismo e agora está se movimentando em direção ao garantismo?
Alberto Toron —
 Acho que dá para ser mais punitivista. E corremos o risco de nos tornarmos um país muito mais punitivo. Basta dizer que o próximo passo é o sujeito ser condenado por um júri e já sair preso. Isso remonta ao Código de Processo Penal de 1941 em sua versão original. Na época, quando condenada em primeira instância, a pessoa já saia presa se não tivesse hipótese de fiança. Voltamos a uma situação que era muito característica do Estado Novo [governo Getúlio Vargas, de 1937 a 1946], em que a regra era prender após o julgamento em primeiro grau. Hoje, a desculpa de que o julgamento pelo júri é um julgamento de órgão colegiado legitimaria a prisão do acusado. Só que se esquece de, pelo menos, duas coisas: a primeira é que, embora não sejam tão comuns as anulações do julgamento do júri pelo tribunal, são muito comuns as modificações na pena. Isso pode sujeitar o réu desde o começo a um regime fechado mesmo com a perspectiva de o tribunal diminuir a pena ou determinar um regime menos grave. Isso é um erro, sobretudo debaixo de uma Constituição como a nossa, que, mal ou bem (e eu acho que bem), ainda garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. Temos também o aumento de pena máxima para 40 anos. Isso é uma coisa que já havíamos superado ao estabelecer 30 anos de penas máximas.

Então, acho que o cenário caminha para mais punitivismo. A diferença é que, quando a “lava jato” começou a ser executada, houve uma espécie de deslumbre. Um delírio punitivo.  Todos aplaudindo e acreditando que agora era a hora e a vez dos ricos irem para a cadeia. Isso sem atentar que se estava criando um caldo de cultura da violência estatal. E só agora, passados mais de cinco anos dessa operação, os tribunais passaram a acordar para o tipo de manifestação popular que se fez em torno do aplauso à “lava jato”, que tem característica fascista.

Existiu a busca de um consenso extraprocessual junto ao povo e à mídia para legitimar decisões que não se equilibravam no Direito. E agora, sobretudo em 2018 e 2019, os tribunais acordaram para coisas como o delator não pode falar junto com o delatado nas alegações finais. As cortes passaram a acordar para exigir uma coisa que se chama devido processo legal.

Acho que pode ser mais punitivo, mas também é possível os tribunais exercerem o seu poder para impedir abusos e impor a aplicação da lei de forma escorreita e impedir penas excessivas e absurdos.

ConJur — E quais seriam os ingredientes desse caldo de cultura de violência estatal?
Alberto Toron — O principal ingrediente é a percepção que as pessoas têm da realidade a partir do que elas veem e ouvem na mídia. A ideia de que vivemos no país da impunidade. Só que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. A crença de que a impunidade existe para os ricos também não é totalmente verdadeira. Estamos vendo que os ricos também vão para a cadeia. Não por acaso, há uma explosão de deputado tenente, deputado capitão, deputado major, deputado coronel. As pessoas votam em vozes que representam a possibilidade de ter leis mais duras. Elas querem o endurecimento do sistema penal que muitos acreditam que é frágil. Esse caldo do punitivismo é formado em grande parte pela distorção da realidade.

Um exemplo eloquente é o da tragédia de Mariana [MG]. A acusação expressa na denúncia do Ministério Público dizia que, quando a barragem rompeu, a onda de lama levou a tudo e todos matando 19 pessoas. No entanto, a denúncia falava do crime de inundação e a prática de 19 homicídios triplamente qualificados.

Quando li aquilo, vi que estava errado. O que se teve ali é uma inundação qualificada pelo resultado. Impetrei um Habeas Corpus arguindo a falta de justa causa para as 19 acusações autônomas de homicídio triplamente qualificado e o TRF-1, por 3 a 0, acatou nosso pedido e trancou a ação penal nessa parte.

Dias depois eu vejo o fato noticiado no Jornal Nacional. Primeiro mostraram as mães e as mulheres chorando a perda dos seus entes queridos. Depois contaram a história dizendo que “apesar disso, o tribunal tirou da denúncia do MP os homicídios” e, por fim, entrevistaram um procurador da República dizendo que a defesa fez um malabarismo e encontrou brechas nas leis antigas. E acabou!

Não tiveram a preocupação de ouvir o outro lado. A realidade é que o tribunal reconheceu que a denúncia era inepta. Ela estava errada. E o povo não sabe disso. O povo que assistiu àquela edição do JN deve ter achado uma sacanagem. A impressão que fica é que a empresa tinha se livrado por conta da astúcia de advogados e não porque o promotor denunciou errado.

A contraface disso aconteceu agora em Paraisópolis [favela na zona oeste de São Paulo], quando nove pessoas morreram por conta de uma ação, no mínimo, inadequada da Polícia Militar. A PM alega que estava perseguindo uns caras de moto e foi recebida a tiros. Quando fugitivos vão de encontro a uma multidão, a polícia deveria parar a perseguição. Os policiais não pararam porque estavam pouco se lixando para o que iria acontecer com aquelas pessoas pobres que estavam ali. Esse é o caldo de cultura da violência. Eles sempre têm uma história bonita para contar sobre como foram recebidos a tiros e tinham que agir dessa maneira. Vivemos em um permanente caldo de cultura da violência. Sobretudo, a violência estatal.

ConJur — Essa cultura da violência representa uma ameaça às prerrogativas da advocacia? A situação piorou?
Alberto Toron —
 A situação é pior. O advogado atualmente é uma espécie de bola da vez para ter sua atividade criminalizada. O advogado e o político. Outro dia pegamos um caso aqui de um sujeito que havia sido intimado para depor como testemunha. Essa pessoa já havia sofrido busca e apreensão em casa e no escritório, e já havia sido alvo de pedido condução coercitiva. Ou seja, ele não era uma testemunha. Era, no mínimo, um investigado. A burla de etiquetas de querer ouvi-lo como testemunha e não investigado é um artifício para forçá-lo a falar sob pena do falso testemunho. Obtivemos o Habeas Corpus para que ele não fosse ouvido. E quando a delegada foi fazer o relatório, escreveu que os “advogados obstruíram a Justiça quando ganharam a liminar”. Estão confundindo o trabalho legítimo da advocacia com a própria obstrução de Justiça.

Outra coisa que me preocupa é essa ideia de enxergar nos honorários do advogado uma forma de lavagem de dinheiro. Se o advogado recebe honorários fruto do seu trabalho e declara esse valor, não existe margem para dizer que isso é lavagem de dinheiro e tentar incriminar o advogado. Veja o que aconteceu no caso João de Deus. Eles o asfixiaram de tal maneira, com tantas precatórias pelo país afora, que eu estava pagando para trabalhar. E fui praticamente expulso do caso. Essa estratégia do Ministério Público de asfixiar o réu para impedi-lo de até mesmo pagar honorários é muito ruim. Tira do cidadão o próprio direito de defesa e, por via transversa, quando se incrimina os honorários do advogado, também se limita a ação da advocacia.

ConJur — Qual a sua opinião sobre a lei contra o abuso de autoridade que entrou em vigor neste ano?
Alberto Toron —
 Era uma necessidade, e lamento que artigos importantes dela tenham sido vetados, como a questão dos vazamentos. Acredito que esta lei traduz a necessidade de um equilíbrio entre a possibilidade de ação dos órgãos repressivos e, por outro lado, o respeito as garantias dos cidadãos. Melhor isso do que nada.

ConJur — O que o senhor acha do posicionamento de entidades de classe de juízes que questionam a criação do juiz das garantias?
Alberto Toron —
 Boa parte dos estados já tem esse juiz. São Paulo tem há mais de 30 anos. Isso é um avanço positivo. Alguns são contra porque acreditam que isso seria algo contra a “lava jato”. Isso é de uma ignorância atroz. Olha o modelo de São Paulo instalado na gestão do desembargador Bruno Affonso de André (1915-2015), de saudosa memória. Esse sistema deveria ser adotado pela Justiça Federal para garantir a imparcialidade do juiz que julga. Estranhamente as entidades de classe estão se colocando contra e reforçando uma cultura do magistrado que investiga e depois condena. Em última analise, a figura do juiz que perde a condição de ser imparcial.

ConJur — Como o senhor enxerga a resolução do CNJ que fixa regras para os magistrados nas redes sociais?
Alberto Toron —
 Esse é um tema muito delicado porque esbarra na liberdade de manifestação da qual os juízes também podem usufruir.  Só que no caso da magistratura existe um problema muito sensível, ligado à atividade deles. O trabalho do magistrado perpassa todo o tecido social e isso reclama uma espécie de imparcialidade do juiz. E, se ele se manifesta nas redes sociais, passa a não poder decidir os casos que lhe são submetidos. Acho correta a decisão do CNJ.

ConJur — O senhor acredita que os mecanismos existentes para fiscalizar o Ministério Público funcionam bem?
Alberto Toron —
 Tenho dúvidas em dizer que eles são eficazes hoje.

ConJur — Existe espaço para a advocacia puramente criminal com a consolidação do modelo de força-tarefa? E com a consolidação do instituto da delação?
Alberto Toron —
 No velho sentido? Existe sim. Muitas vezes a pessoa não é culpada e não quer fazer acordo. Eu vi isso claramente no caso do Aldemir Bendine. Fizeram uma acusação contra ele usando todo o Código Penal para forçá-lo a fazer uma delação. É o que os americanos chamam de “overcharging”. Uma acusação excessiva. Ele não quis fazer a delação. Fizemos a defesa dele e foi absolvido de 90% dos crimes que foi acusado. Isso é expressivo. Então, existe espaço para advocacia tradicional. E eu sou um representante dela.

ConJur — A sua vitória no STF no caso Bendine foi um dos grandes momentos da advocacia de 2019. Fale um pouco sobre a experiência desse caso.
Alberto Toron —
 Eu não dava muita bola para a questão das alegações finais, por acreditar que era uma coisa óbvia. O acusado que sofre uma delação tem o natural direito de se contrapor a uma acusação, inclusive a que venha do delator, não só do Ministério Público. Eu achava o tema uma obviedade e não acreditava que os tribunais fossem se contrapor a isso. O grande tema não é exatamente a anulação determinada pelo Supremo Tribunal Federal. Para mim, o grande tema dessa história é o resgate do Habeas Corpus como instrumento de controle do devido processo legal.

O que nós vimos aí é que, para o cerceamento do direito de defesa prevalecer, basta que os tribunais aleguem que esse tema não deve ser tratado pela via do Habeas Corpus. O réu estava preso quando o STJ alegou a mesma coisa, e o ministro Luiz Edson Fachin tentou sepultar a discussão, levando o agravo regimental para o Plenário Virtual, em que o advogado não pode intervir. Isso só foi desconstruído quando o ministro Gilmar Mendes levou o caso para o Plenário presencial. E quando eu fiz, depois, a sustentação oral. Aí foi possível expor o absurdo. Nessa história, o mais importante, para mim, foi o resgate do Habeas Corpus do que propriamente o reconhecimento da nulidade.

ConJur — Como foi a sua experiência na Justiça Eleitoral?
Alberto Toron —
 Minha experiência foi muito rica. Aprendi muito com os juízes daquela corte e olhei um pouco papel do juiz e pude entender melhor as dificuldades do exercício da magistratura. Conheci uma Justiça que, apesar das dificuldades, cuida de prover ao magistrado excelentes auxiliares. O tribunal também dispunha de departamentos técnicos excepcionais. Votei muito vencido em algumas coisas por conta de um posicionamento mais liberal, mas nem por isso me senti desprestigiado.

ConJur — O que o senhor acha da lei da ficha limpa?
Alberto Toron —
 Eu sempre fui contra. Acredito que quem deve fazer a peneira sobre quem deve se candidatar é o povo e o voto. Acho uma lei autoritária e profundamente equivocada.

ConJur — O ministro Luís Felipe Salomão, do TSE, defende uma quarentena efetivas para juízes se candidatarem a cargos eletivos. O que o senhor acha dessa proposta?
Alberto Toron —
 Acho uma proposta boa porque desvincula o magistrado de posturas populistas e muitas vezes eleitoreiras. É importante garantir que o juiz possa ser candidato, mas não pelo que ele fez quando estava na magistratura. Às vezes, alguns adotando uma postura de prender muito para ficar famoso e se candidatar.

ConJur — A discussão em torno da “lava jato” tem alguns temas chaves. Um deles é o lawfare. O senhor acredita que o ex-presidente Lula foi vítima da utilização do direito como instrumento de perseguição?
Alberto Toron —
 Acho. O fato de o Lula ter sido julgado com a velocidade que foi no caso do tríplex escancara que quiseram tirá-lo do páreo eleitoral para favorecer um candidato. E pior. O juiz que o julgou se tornou ministro do concorrente vencedor. Isso escancara o uso do Direito como instrumento de perseguição política.

Recentemente, uma procuradora da República propôs absolvição sumária do Lula, da Dilma, do Mantega e de outros do caso conhecido como “quadrilhão do PT”. Essa procuradora alegou que a denúncia oferecida pelo ex-PGR Rodrigo Janot instrumentalizava a criminalização da política, que não é outra coisa que não usar o Direito Penal para perseguir políticos.

ConJur — Como foi defender a lei da anistia na Corte Interamericana de Direitos Humanos?
lberto Toron — Fui nomeado perito em leis para falar sobre a legislação incidente em torno do caso do Vladimir Herzog [1937-1975], para explicar as razões de não ser possível processar os torturadores no Brasil, como definiu o Supremo Tribunal Federal. Eu falei sobre o julgamento da ADPF 153, quando se julgou constitucional a lei da anistia. Expliquei que essa lei não era uma farsa, mas resultado de muito debate. Levando em conta que os pactos firmados pelo Brasil em que crimes como tortura são imprescritíveis, a subscrição dos pactos internacionais foram posteriores aos crimes. E, sendo posterior, não podem retroagir para abarcar coisa do passado sob pena de violência a um princípio cardeal de nosso ordenamento penal e constitucional, que é a irretroatividade da lei penal mais gravosa. Foi basicamente para isso que eu fui investido na condição de perito.

Eu só aceitei essa posição por entender que o Brasil assumiu que essas pessoas, e não apenas o Herzog, foram mortos por agentes do Estado. O país, além de reconhecer o crime, também indenizou a família dessas pessoas. Por isso, me senti moralmente confortável em mostrar do ponto de vista jurídico que não era possível processar esses facínoras.

Também queria dizer que o caso Herzog foi determinante para que eu optasse pelo Direito. Meu plano era estudar engenharia, mas diante daquela injustiça e violência, me senti motivado a estudar Direito.

Fonte: ConJur, por Rafa Santos