Por João Marcos Buch –
No livro A Peste (Camus), já na parte final da história, dois personagens visitam um estádio de futebol, usado para isolar suspeitos de contaminação pela peste. Eles encontram o juiz da cidade, personagem que sequer pode ser considerado coadjuvante no enredo, o qual, com perdas irreparáveis e potencial infecção, também foi enviado à quarentena. Ambos conversam com ele e sentem o seu sofrimento. Ao saírem, um diz ao outro: “- Pobre juiz. Era preciso fazer alguma coisa por ele. Mas como se ajuda um juiz?”.
Hoje me fiz esta pergunta. Cheguei em casa tarde da noite. Após o jantar, tentei seguir os rituais aos quais estou habituado, como ver à um filme, ler algum texto, vasculhar músicas na internet, mas a mente reverberava e me prendia a uma audiência feita horas antes com um apenado que eu conhecia de longa data. Ele tinha 36 anos, idade rara para um detento, haja vista a faixa etária da população prisional ser bem inferior, por motivos os mais variados, mas especialmente porque o ciclo de violência que atinge milhares de jovens no Brasil não os deixa seguir na vida adulta.
O fato é que, ao final da audiência, falei ao apenado, de forma tranquila e objetiva, que nos últimos 18 anos eu tinha sido o juiz dos seus processos, primeiro como titular de uma vara criminal, que o julgou e o condenou, e depois como titular da vara de execuções penais, que executou e continuava executando suas penas. Disse-lhe que já nos conhecíamos assim há tanto tempo, que ambos estávamos envelhecendo juntos, eu como juiz e ele, infelizmente, como preso. Com marcas de maus-tratos longínquos na pele, ele expressou um ar melancólico e concordou comigo. Depois, um suspiro profundo, primeiro dele, depois meu, tomou lugar na sala. Nada mais falamos.
Há muitos anos tenho trabalhado perante o sistema de justiça criminal e carcerário e nesse tempo não foram poucas as experiências sobre o sofrimento.
Nunca me perguntei se eu busquei esse sofrimento. Quero acreditar que não, que nunca o procurei. Prefiro pensar que ele apareceu em minha vida e eu, decidido a enfrentá-lo, não o recusei.
Quando assumi o cargo de juiz de direito titular da vara de execução penal, não sabia exatamente o que me esperava, eu tinha apenas uma ideia. Já havia estado muitas vezes antes na prisão, mas como juiz criminal, que decretava prisões, deferia liberdades e julgava, aplicando penas. Também havia visto o documentário “Entre a Luz e a Sombra”, que acompanha a dupla de rapper 509-E, de Dexter e Afro-X, dentro do Carandiru, com participação do respectivo juiz da execução penal. O filme me arrebatou.
Entretanto, ao assumir a execução penal, o que encontrei foi muito maior que o imaginado e o sofrimento começou a se aproximar mais de mim… e eu dele. O custo pessoal foi grande. Na exaustão das funções, nada valeu me afastar de quem e do que amo, mas eu ainda assim o fiz e creio que o faria novamente, aliás, continuo fazendo.
Mas por que conto isso? O que desejo quando exponho tormentas escuras e profundas para se esfacelarem na claridade da superfície? Talvez no uso das palavras haja uma sublimação, numa estética que envolve e suaviza os sentidos.
Já dei pistas antes de que o que tenho não é coragem, mas falta de escolha. Coragem só existe quando há opção e, ora, que opção há quando me deparo com o mantra odioso que cega e corrói as veias humanas ao dizer que todo preso é bandido e que bandido bom é bandido morto? Que outro caminho posso tomar quando venenos são destilados de bocas autoritárias contra a dignidade da pessoa? Qual sentido outro daria a agentes públicos que comemoram “CPFs cancelados” e congratulam operações policiais desastrosas, que sangram favelas e fazem chorar mães de filhos precocemente sequestrados da vida?
Se o Brasil assume descaradamente uma necropolítica, com ápice em ações espetaculosas, que legitimam execuções sumárias num exercício de força, onde quem não é morto é levado para um necrotério de vivos chamado prisão, resta ao juiz da execução penal, que atua no sistema carcerário e por isso enfrenta a dura realidade do ar espesso e opressor da cadeia, uma só opção, um único caminho, apenas um sentido, o da luta pelo direito. E não importa o sofrimento que disso resulte.
Quem vai preso, quem fica preso e quem volta preso é o negro, é o pobre, é o oprimido, esse sim, sofre. Se como juiz eu não perceber o que está diante de meus olhos, não obedecendo ao meu dever constitucional, então que eu jogue a toalha, apague a luz e abandone a justiça. Não há outra opção!
Por isso, o cotidiano de quem luta pelos direitos humanos, pela defesa de um estado justo e solidário, respeitador das garantias fundamentais, é um cotidiano de tormentas, dores e agonias, é um cotidiano de sofrimento.
Mas, já dizia um poeta, o que o homem faz pelo bem do outro ele o faz especialmente para si. E, para mim, a miséria não se tornou mais forte que a esperança, o sofrimento não me venceu e não sou eu que preciso de ajuda.
Não sou o juiz de Camus.
JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
MAZOLA
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