Por Lincoln Penna

Há mais de trinta anos escrevi uma monografia para participar de um concurso promovido pela Fundação José Bonifácio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O tema do referido concurso aberto aos docentes tinha por título “A Universidade no Terceiro Milênio”. Denominei a minha monografia de “A Universidade e a construção da dignidade humana” assim o fiz para enfatizar, entre outras coisas, a importância do ser que precisamos para a humanidade.

Vale salientar que naqueles anos do início da última década do século XX estávamos convencidos de que a sociedade idealizada por nós poderia finalmente ser edificada, pois vivíamos tempos embalados pela esperança de que dias melhores viriam. Em parte, por estarmos abertos e acobertados pela Constituição democrática que foi possível redigir. A nova Carta Magna promulgada em 1988 e que vige até hoje, a despeito dos que tentam mutilá-la no essencial, ainda nos inspira alguma esperança.

Passado todos esses anos, hoje a democracia saudada naqueles tempos fenece no que diz respeito ao papel dos que exercem as tarefas de críticos das práticas sociais, um dos propósitos da universidades, o que resulta na evasão da realidade. A respeito disso, cabem algumas considerações. Os pesquisadores das áreas sociais e os chamados formuladores de opinião, para dar um sentido mais geral, têm tido atitudes pouco alinhadas com o tempo presente, principalmente no instante em que mais precisamos discutir a reconstrução do país. É este o teor desse ensaio.

Há um costume dos mais velhos que consiste em atribuir ao passado, por eles vividos na juventude, qualidade de vida superior ao de seus filhos e netos. Trata-se na melhor das hipóteses de um discurso saudosista não encontrando amparo na realidade dos fatos. O que verdadeiramente existe é que o tão proclamado progresso cobra um preço alto para o usufruto das conquistas materiais.

O passado recente ou remoto tem sido um recurso para o não enfrentamento de novos e velhos desafios não equacionados, ou sequer compreendidos. Tanto ao nível do cotidiano das pessoas quanto ao que diz respeito às concepções políticas e ideológicas, esse recurso de um eterno retorno é usado para que se mascare as razões dessa sensação de mal-estar ou de perdas que o tempo roubou. Assim, evocar o passado funciona como um antídoto à sensação de depressão.

Existem causas consistentes que podem nos levar ao reconhecimento dessas razões. É preciso, no entanto, recorrer à história. O que pressupõe uma consciência de nossa historicidade, isto é, de nossa vivência partilhada com os nossos coetâneos, sem o qual nos comportaremos e reagiremos sempre instintivamente, incapazes de examinar as intercorrências em nossas vidas. Daí a importância da memória coletiva, que se situa na capacidade de registro das ocorrências humanas.

Vou me reportar aos tempos pretéritos da universidade brasileira em seu funcionava nos anos das décadas de cinquenta e sessenta do século XX, e compará-los aos de hoje, e como se passa presentemente decorridos mais de meio século. Esta comparação será feita tão somente como elementos para subsidiar aqueles que eventualmente se interessem em dar consistência a essas linhas, através de suas leituras críticas e possíveis contribuições. Creio que assim será possível dar procedência desse paralelo dos tempos e avalizar o caráter desse exercício crítico.

Para tanto, é preciso que se tenha claro as realidades daqueles tempos pregressos e os de hoje. Basta, por exemplo, que se tenha dados como a densidade populacional do Brasil de meados do século próximo passado com os de nosso tempo atual. Distam, só nesta comparação, cerca de 160 milhões de habitantes. Só aí pode se ter a real dimensão dos tempos em relação a essa questão. Sem deixar de registrar o diferencial no que se refere às matrículas tão díspares na comparação dos dois tempos.

Até 1960 os universitários não chegavam a 100 mil, ao passo que hoje esse contingente soma milhões a abarcar os dados das universidades públicas e privadas, além das comunitárias. Expressões significativas se comparadas as de outros países no mesmo período de tempo, cujo crescimento harmoniza-se com os seus censos demográficos. Esses dados se encontram disponíveis em várias plataformas oficiais e oficiosas, de entidades governamentais ou particulares, que aqui serão deixadas de lado em razão de tratar-se apenas de um ensaio.

O problema mais relevante, antes de dar continuidade à questão das matrículas, se prende a uma outra comparação. Naqueles já distantes anos o número de analfabetos chegava a cerca de 1/3 de nossa população. Hoje esse número, apesar do crescimento populacional não atinge 10% desse contingente. Todavia, contamos com uma população de analfabetos funcionais terrivelmente volumosa.

Dessa maneira, a incapacidade de ler e compreender o que lê por parte desses novos analfabetos é estarrecedora. São presas fáceis de qualquer ação inescrupulosa a explorar essa situação.

Além do exposto e retornando às matrículas, problemas outros merecem a nossa atenção. E eles se encontram não necessariamente no crescimento vertiginoso das matrículas. Estes dados são até positivos, uma vez que significa uma atração e disponibilidade de ingresso nos cursos superiores. O que deve nos preocupar são basicamente duas coisas, que precisam ser ressaltadas.

A primeira é a qualidade dos cursos, muitos dos quais carentes de profissionais aptos a atender minimamente aos estudantes vindos, sobretudo, das camadas mais pobres da sociedade. Acresce a isso, a obtenção de um nível qualitativo do corpo docente dependente de permanente especialização e de salários atraentes, de modo a reter no magistério esses quadros docentes. Sem as condições materiais e dignas do trabalho do magistério muito pouco pode se esperar.

A outra coisa preocupante consiste no próprio papel das universidades, que devem estar voltadas para os desafios de uma sociedade carente e necessitada de projetos audaciosos que a embale para os desafios de um futuro que reclama urgência na adoção de soluções cada vez mais emergenciais. Permanecer como instrumentos de concessão de diplomas e não formular um plano que produza alternativas para o para prover tais necessidades é algo que justifica a insatisfação, quando não o abandono dos jovens estudantes. Sobretudo, os mais pobres.

No início da década de sessenta, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) foi um ator político dos mais operosos. Substituiu uma universidade acanhada, austera, conservadora, centrada na cátedra a aprisionar conhecimentos por parte de seus titulares vitalícios, absolutamente alheios ao papel da universidade, ou a desprezar o que se passava na sociedade brasileira. Coube ao ISEB a tarefa diligente de propor alternativas ao país em meio às tensões políticas e ideológicas que antecederam ao golpe de 1964.

Dessa entidade vinculada ao MEC, a intelectualidade ligada ou não às universidades demonstrou como é possível pensar o país aglutinando tendências distintas, mas que convergiam para o mesmo objetivo: pensar o Brasil. Neste sentido, o ISEB deu uma demonstração do espírito democrático que faltava às universidades logo após o golpe submetidas ao tacão da ditadura, diante da qual, no entanto, não se vergou.

Hoje temos liberdade, contudo falta reatar os compromissos com o povo literalmente à margem dos eventuais benefícios das pesquisas e das atividades de extensão nas universidades, salvo exceções que só reforçam a regra. E esta necessita de amplitude para que se conjuguem, de um lado, a retomada das práticas democráticas, e de outro, o compromisso com o país de forma consistente.

A continuar restrita às atividades de gestão, importantes sem dúvida, mas que não deveriam se restringir a isso, de vez que o fundamental é a mobilização dos componentes dessas unidades universitárias em seus campi, ou seja, os corpos docente, discente e de servidores técnicos administrativos. Estes devem estar em comunhão de interesses que não se esgota no cumprimento das tarefas que cada qual desempenhe, mas na própria criação de uma comunidade de destino, capaz de dar vazão à prática irmanada da coletividade, sem a presença de formas de subalternidade.

Com suas atividades funcionais, mas com vida participativa, e não confinados em seu casulo. Por outro lado, a autonomia universitária não implica em autodefesa diante de críticas que venham de fora dos espaços das universidades. Ela, autonomia, tem a ver com a não ingerência de poderes que constranjam suas atividades. Nada a ver com as críticas ao seu desempenho.

Quando surgiu na Alemanha em 1923 a escola intitulada “Teoria Crítica da Sociedade”, mais conhecida como a Escola de Frankfurt, numa época de profunda crise do imediato pós-guerra, a ideia de seus fundadores era a de dar sentido à aplicação do termo teoria. Passava, até então, segundo estes críticos, a concepção errática de teoria, como se o seu emprego dispensasse maiores questionamentos ao mencionar o termo.

Inspirados em Marx, que desenvolvera o Prefácio à Crítica da Economia Política relativa ao capitalismo, objeto de seus estudos, Horkheimer e os seus colegas membros dessa escola fundaram o exercício da teoria crítica, pois não bastava evocar a teoria como um argumento de autoridade justificador para toda e qualquer análise.

Também, tal como os membros fundadores do ISEB, fora dos campi das universidades, alheias ao espírito crítico, ou só o considerando para efeito de pesquisas pontuais, jamais como lugar de repensar a sociedade como instrumento coletivo visando o mais amplo bem-estar da coletividade cresceu o anseio por se encontrar novos caminhos para a sociedade brasileira.

E da mesma forma que a Alemanha às vésperas da emergência do nazismo proliferam entre nós as vozes e as práticas contrárias ao espírito crítico, sem que tivesse havido uma catastrófica guerra, senão a que ocorre cotidianamente nas comunidades desassistidas, Como se estivéssemos numa sociedade tutelada pela mais sombria das periculosidades, a de fazer instalar entre nós o marasmo, o estado moribundo, incapaz de ser superado, seja por conta da inércia que tomou conta de seus cidadãos ou pela massificação da estupidez, manifestação mais robusta da ignorância resultado do descaso dos que detém o poder e o exercem em seu proveito e nada mais.

Inventar, ousar e dar vazão à criatividade de maneira a explorar positivamente o potencial da gente brasileira, eis um caminho a ser incentivado pelas autoridades que hoje se debruçam diante do entulho autoritário ainda persistente e da operação de desmontagem do estado na área pública. Especialmente no que se refere à formação de quadros oriundos de nossas universidades ainda carentes de recursos indispensáveis ao arranco do desenvolvimento associado à soberania nacional.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO

 


Tribuna recomenda!