Redação

Ainda que restrinja os direitos de ir e vir e de reunião, o bloqueio total de atividades (lockdown) pode ser implementado sem que haja estado de defesa ou de necessidade. E por mais que a crise do coronavírus venha se aprofundando, o Estado tem mecanismos para enfrentar a epidemia sem aderir a esses regimes de exceção.

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais.

O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça ordenou, em 30 de abril, que o estado e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus.

Depois disso, foi decretado lockdown em Belém e mais nove cidades do Pará, em Fortaleza, Salvador, Niterói e partes da capital fluminense. No entanto, a Justiça negou pedidos para instaurar o bloqueio total no Amazonas e em Pernambuco.

Nesse regime, há limitação de alguns direitos fundamentais. Especialmente os de ir e vir e de reunião. Por isso, há quem questione a constitucionalidade da medida — como o juiz que a decretou em São Luís.

A Constituição permite a restrição desses direitos fundamentais pelos estados de defesa ou de sítio — o Brasil não decretou nenhum deles, e sim o estado de calamidade pública. O estado de defesa pode ser instituído para preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Tal situação pode limitar os direitos de reunião e de sigilo de correspondência e comunicação telefônica.

Mais rigoroso, o estado de sítio pode ser decretado nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Nesse regime, o poder público pode obrigar pessoas a permanecer em um certo local; deter indivíduos; restringir a inviolabilidade da correspondência, o sigilo das comunicações, a prestação de informações e a liberdade de imprensa; suspender a liberdade de reunião; promover buscas e apreensões em domicílios; intervir em empresas de serviços públicos e requisitar bens.

Tanto o estado de defesa quanto o de sítio devem ser propostos pelo presidente da República, dependendo de aval do Congresso. O primeiro deve durar 30 dias, podendo ser prorrogado uma vez. Já o segundo não pode ultrapassar um mês, salvo em caso guerra.

Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdownPedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias. Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus.

Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinária — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. A legalidade extraordinária é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como no estado de exceção. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis. A ideia é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor.

“Vale ressaltar que esse período de legalidade extraordinária pode ser interpretado como um momento em que o Executivo e o Estado em geral têm mais poderes. Mas, na realidade, eles têm mais deveres. Autoridades públicas têm limitações às suas prerrogativas, tanto ou mais do que os cidadãos têm restrições aos seus direitos. E elas têm que agir muito mais por dever do que por poder nesse período”, destaca.

O professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm diz que a imposição do lockdown sem decretação de estado de defesa ou sítio não é inconstitucional porque estabelece medidas menos agressivas aos direitos fundamentais do que as que ocorreriam nestes regimes. “Sendo menos gravosas, essas medidas são preferíveis do ponto de vista da proporcionalidade, por serem menos limitadores de direitos fundamentais.”

Além disso, ressalta o professor, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que estados e municípios têm competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em defesa da saúde pública. Ou seja: os entes podem restringir a circulação de pessoas, mas não no nível dos regimes de exceção previstos na Constituição.

Nem o direito de ir e vir nem o direito de reunião são absolutos, lembra Binenbojm. E eles podem ser limitados em prol da saúde pública. Dessa maneira, se a circulação ou aglomeração de pessoas ameaça o bem-estar da população, o Estado pode usar o poder de polícia para impedir o exercício desses direitos, analisa.

E não é só nos estados de exceção que tais direitos sofrem restrições, declara Carolina Fidalgo, professora de Direito Público da pós-graduação da Uerj. Bem ou mal, as necessidades de se obter habilitação para dirigir, de se observar as regras de trânsito e de se respeitar barreiras de locomoção de pessoas e veículos em dias de grandes eventos são limitações a essas garantias. Assim como as prisões, desde que decretadas com base nos requisitos legais.

A Lei 13.979/2020, que reconheceu a situação de emergência na saúde pública, também mitigou tais direitos ao autorizar a adoção de medidas como quarentena, isolamento e restrição de locomoção, afirma Carolina.

“A situação de emergência em questão impõe a adoção de medidas adequadas e necessárias para conter o espalhamento da doença e colapso das redes pública e privada de saúde, inclusive com restrições justificadas ao direito de ir e vir. Se é discutível a necessidade de prévia decretação de estado de sítio ou de defesa, é certo que tais medidas devem ser fundamentadas em lei (e aí se pode discutir se a Lei 13.979/2020 já é suficiente para isso) e devem ser justificadas diante da situação específica de cada município”, opina.

Sem necessidade
Ainda que a crise do coronavírus venha se agravando no país — até esta sexta-feira (8/5), já havia 145.328 infectados e 9.897 mortos em decorrência da Covid-19 —, não é necessário decretar estado de defesa ou sítio para enfrentar a epidemia, avaliam os professores.

Na visão de Binenbojm, não há circunstâncias objetivas que autorizem a implementação desses regimes excepcionais. Segundo ele, há medidas de polícia administrativa sanitária que podem ser tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais para combater a epidemia. Apenas se elas forem insuficientes é que se deve cogitar providências mais duras.

Por sua vez, Serrano acredita não ser preciso suspender tantos direitos para enfrentar o coronavírus. E os estados de defesa e sítio abririam oportunidade para disputas políticas, como a perseguição de adversários e a implantação de limitações abusivas.

Punições cabíveis
Também há controvérsia sobre as punições que podem ser impostas a quem descumprir o lockdown. Leis estaduais e municipais podem prever multa para a pessoa que circular pelas ruas sem justificativa, aponta Binenbojm. Caso o sujeito não pague, poderá sofrer execução fiscal.

Agentes públicos também podem conduzir coercitivamente os infratores a suas residências ou recolhê-los em abrigos, ressalta o professor da Uerj. Isso para que essas pessoas não descumpram as normas de restrição à ocupação de espaços públicos e de aglomeração, que afetam o direito coletivo à saúde.

Porém, as multas administrativas devem ter valores proporcionais às violações, argumenta Carolina Fidalgo. Ela diz que as penalidades têm que ser estabelecidas na norma que instituir o lockdown.

Não há consenso, entretanto, sobre a prisão em flagrante e acusação penal daquele que desrespeitar o bloqueio total. Binenbojm entende que só isso só seria possível se houvesse previsão em lei federal.

Por outro lado, Serrano avalia ser aplicável o crime de epidemia. O delito, estabelecido pelo artigo 267 do Código Penal, consiste em “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.

Mas Serrano crê ser injusto punir – criminalmente ou administrativamente — os pobres. “O governo não conseguiu até agora viabilizar auxilio-econômico para as pessoas ficarem em casa. Assim, não é possível puni-las quando elas vão para a rua para trabalhar — nesse cenário, estão em estado de necessidade. Só é possível cobrar os pobres quando o Estado der condições para os pobres ficarem em casa.”

A seu ver, as multas deveriam ser aplicadas a quem tem um certo padrão social — proprietários de veículos ou detentores de uma determinada renda. O professor da PUC-SP ainda destaca que as sanções administrativas são mais eficazes em coibir comportamentos do que as criminais. Como exemplo, cita a proibição de dirigir embriagado. A medida só obteve mais adesão da população quando o valor da penalidade foi consideravelmente aumentado, indica.


Fonte: ConJur