Por Thiago Pedro Pagliuca dos Santos 

As reflexões aqui expostas são baseadas em algumas das conclusões extraídas de minha tese de doutorado em direito penal (“Análise Dogmática das Medidas de Segurança”), defendida em 2020 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

(1) A medida de segurança é um mal imposto pelo Estado, em razão da prática de injusto penal, a pessoas com transtorno mental. 

A medida de segurança, ao contrário do que se pode ingenuamente pensar, não foi instituída em benefício das pessoas com transtornos mentais. Na verdade, fruto da ideologia da defesa social, foi concebida no final do século XIX como um instrumento de combate à criminalidade a ser utilizado pelo Estado contra indivíduos considerados perigosos, em relação aos quais a aplicação de pena proporcional ao fato praticado era tida como insuficiente para impedir a reiteração delitiva.

Seu alvo eram não somente as pessoas com doenças mentais, mas também vadios, mendigos, ébrios habituais, homossexuais, prostitutas e certas classes de criminosos. Destacavam-se, dentre estes, os habituais, profissionais, reincidentes e por tendência.

Sua finalidade era curar os delinquentes corrigíveis e neutralizar os incorrigíveis, conforme expôs Franz von Liszt em seu Programa de Marburgo. Para atingir esse objetivo, era necessário que pudesse ser aplicada por prazo indeterminado.

No Brasil, o instituto foi previsto somente pelo Código Penal de 1940. Ele permitia que os considerados perigosos, tivessem ou não transtornos mentais, sofressem penas (proporcionais aos fatos praticados) e, posteriormente, medidas de segurança (proporcionais à “periculosidade”), por prazo indeterminado.

Na prática, penas e medidas de segurança eram cumpridas no mesmo ambiente e representavam uma dupla punição pelo mesmo fato; um expediente estatal para lidar com determinadas pessoas sem se submeter às limitações temporais que o direito penal impõe.

Em 1984, com a Reforma da Parte Geral do Código Penal, a substituição do sistema do duplo binário pelo vicariante restringiu a aplicação das medidas de segurança às pessoas com transtornos mentais, o que foi notável avanço.

(2) O paradigma da defesa social em relação às pessoas com sofrimento psíquico já foi abandonado pela Constituição Federal, pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e pela legislação ordinária, mas permanece presente na mentalidade de diversos operadores do direito.

A CF proíbe a imposição de sanções perpétuas e de morte (exceto em situação de guerra declarada). Ora, se ninguém, por mais “perigoso” que pareça ser, pode ser segregado para sempre, ou aniquilado, é evidente que a CF não agasalhou a ideologia da defesa social, a qual pressupõe, em seu sentido clássico, a possibilidade de pena de morte ou prisão perpétua aos chamados “incorrigíveis”.

Além disso, com status de norma constitucional, há a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que determina de forma categórica “que a existência de deficiência não justifique a privação de liberdade” (art. 14, item 1, b). O fato de uma pessoa ser diagnosticada com algum transtorno mental, portanto, não é fundamento para rotulá-la de perigosa e, como consequência, interná-la compulsoriamente por prazo indeterminado.

Por fim, existe a Lei 10.216/01, que consagrou a internação como medida de ultima ratio, possível somente se os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4º). O princípio da brevidade da internação também foi incorporado ao ordenamento jurídico, pois está vedada a internação prolongada que cause situação de grave dependência institucional (art. 5º).

A despeito de toda a normativa citada, não há como fechar os olhos para a realidade: as pessoas com transtornos mentais acusadas de cometer injustos penais são, em regra, tratadas de forma mais gravosa que imputáveis autores de fatos semelhantes. Alguns casos que chegaram ao STJ mostram situações absurdas, como a de indivíduos internados por 14 anos pelos crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem e ameaça (HC 114117), 20 anos por tentativa de lesão corporal simples (AgRg no Resp 1124698), 16 anos por tentativa de furto (HC 112227), 13 anos por furto qualificado (Resp 1111820).

A distinção entre o dever-ser e o ser deve ficar clara para todos os operadores do direito, principalmente defensores públicos e advogados, para que não se seduzam pelo discurso de que a medida de segurança não é pena, mas um bem a quem a sofre.

É arriscado aos defensores requerer, “em benefício do réu”, que lhe seja aplicada uma medida de segurança. A situação é ainda mais problemática se o acusado é primário e, em razão da sanção cominada ao delito, eventual condenação permita a fixação de regime inicial aberto ou a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Como a mentalidade de grande parte dos promotores de justiça e magistrados ainda se fundamenta na ideologia da defesa social, é possível que a defesa “troque” uma pena de 2 anos de reclusão em regime aberto – substituída por duas penas restritivas de direitos – por uma internação perpétua, caso a pessoa com transtorno mental tenha cometido, por exemplo, o injusto penal do art. 155, §4º do Código Penal (furto qualificado).

Em razão dessa situação, a 2ª Turma do STF decidiu corretamente que “o incidente de insanidade mental, que subsidiará o juiz na decisão sobre a culpabilidade ou não do réu, é prova pericial constituída em favor da defesa, não sendo possível determiná-la compulsoriamente quando a defesa se opõe” (HC n° 133078). O STJ recentemente seguiu na mesma linha (HC n° 488029).

(3) É necessário aplicar a teoria da dupla garantia às pessoas com transtornos mentais que cometam injustos penais  

Os operadores do direito, notadamente os juízes, têm uma difícil tarefa quanto às medidas de segurança. Ao mesmo tempo em que devem reconhecer que, atualmente, inimputáveis são tratados de forma mais gravosa do que os imputáveis (e, por isso, defensores e advogados devem tomar cuidado ao concordar com a instauração de incidente de insanidade mental), é fundamental que se empenhem em alterar esse quadro.

Para isso, devem acolher uma estratégia de curto prazo de redução de danos. De forma imediata, o caminho mais seguro é aplicar a teoria da dupla garantia, ou seja, reconhecer que todos os direitos e garantias processuais e penais também se aplicam aos inimputáveis; sem prejuízo, deve-se lhes aplicar, em acréscimo, as garantias próprias decorrentes da legislação protetiva (Lei 10.216/01, Estatuto da Pessoa com Deficiência etc.) em razão de sua especial vulnerabilidade.

As decorrências lógicas da incorporação da tese da dupla garantia são muitas e não podem ser listadas em sua integralidade nesta coluna, mas passo a tratar das que entendo fundamentais.

(a) O prazo máximo da medida de segurança deve ser fixado na sentença e não pode ser superior à pena que seria aplicável ao semi-imputável. Medidas de segurança por prazo indeterminado, ou mesmo por prazos demasiado extensos – como o sugerido pelo STJ na súmula 527 (“O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado”) –, violam o princípio da isonomia.

(b) A escolha da medida de segurança aplicável (internação ou tratamento ambulatorial) não deve se pautar na natureza da pena cominada ao delito (reclusão ou detenção), conforme dispõe o art. 97 do CP. A regra, prevista expressamente na Lei 10.216/01, é o tratamento ambulatorial. Para optar pela internação em detrimento do tratamento ambulatorial, o magistrado deve observar os seguintes critérios: (i) proporcionalidade (isto é, deve verificar se ao imputável seria aplicável pena privativa de liberdade em regime fechado); (ii) existência de laudo médico indicando a internação como medida terapêutica adequada.

(c) Aplica-se a prescrição da pretensão punitiva e a pretensão executória às medidas de segurança, devendo-se considerar para o cálculo o prazo máximo fixado na sentença.

(d) Além da prescrição da pretensão executória, é possível que, transcorrido tempo significativo desde a emissão do laudo médico recomendando a internação, extinga-se, por falta de interesse processual, a medida de segurança imposta – antes mesmo de sua execução – ou se a converta em tratamento ambulatorial, caso não se demonstre a atualidade da necessidade da internação.

(e) Todos os institutos despenalizadores – composição civil de danos, transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal – são aplicáveis aos inimputáveis.

(4) A tese de que não se deve aplicar qualquer sanção à pessoa com transtorno mental que tenha praticado um injusto penal, embora sedutora e absolutamente de acordo com os postulados normativos acima citados – que afastam a ideologia da defesa social -, traz o risco de que o poder punitivo psiquiátrico se exerça sem limites jurídico-penais.

Diversos autores foram fundamentais em minha pesquisa. Dentre os juristas, destaco Eugênio R. Zaffaroni, Juarez Tavares, Salo de Carvalho, Mariana Weigert, Thayara Castelo Branco, Jéssica Almeida, Virgílio de Mattos, Paulo Jacobina, entre outros.

Todos eles partem da mesma visão: o instituto das medidas de segurança é anacrônico e violador dos direitos fundamentais das pessoas com sofrimento psíquico. As estratégias para a mudança dessa realidade, porém, são distintas.

Alguns defendem que os inimputáveis – tenham ou não cometido injusto penal – sejam tratados exclusivamente no âmbito da saúde. O risco desse pensamento está em ignorar que o poder punitivo psiquiátrico, com ou sem a nomenclatura da medida de segurança, poderia continuar se exercendo em face desses indivíduos e sem qualquer controle jurídico, pois afastadas as garantias penais e processuais penais.

Devemos ter presente que uma das maiores vergonhas registradas na história do país – o Holocausto Brasileiro (título da obra de Daniela Arbex) – ocorreu em hospital psiquiátrico desvinculado (formalmente) do sistema penal.


THIAGO PEDRO PAGLIUCA DOS SANTOS é doutor em Direito Penal (USP), juiz de Direito e Membro da AJD, professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)


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