Por Alessandro Ventura da Silva

Alegria e tristeza, força e vulnerabilidade, consciência e indignação, longe de se excluírem, coexistiram na última edição do dia da consciência negra.

Frequentemente reconhecida pelas manifestações de grandeza festiva de homens e mulheres negras sobreviventes do cotidiano brasileiro, a comemoração deste ano foi maculada pelas cenas de espancamento que precederam o assassinato de João Alberto Freitas nas dependências de uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre. Transmitida praticamente ao vivo, aquela virulência e violência intraduzível fustigava às consciências como uma reatualização da violência perpetrada contra os escravizados. O episódio gerou comoção e mobilizou a população brasileira a ponderar sobre o convite feito pelos movimentos sociais para que vivesse uma existência antirracista. Por outro lado, na contramão desta tomada de consciência, o episódio trágico funcionou como o pano vermelho agitado na frente do touro. Porque capturados pelo desejo irreprimível de discursar, ou, sei lá, de dar palestrar, membros das altas esferas do poder político decidiram cair de cabeça no tema do racismo. E mais uma vez, ouvimos a repetição da cantoria cada vez mais cansativa aos ouvidos do brasileiro: não vejo cor. Não viram a cor vermelha do pano? Deram com os chifres no muro…

Racismo, luz e cegueira

É incrível como a barbaridade de um crime que chocou o povo brasileiro não tenha inspirado na presidência uma atitude respeitosa ou de solidariedade para com os familiares do morto. Na verdade, apesar da liturgia inerente ao cargo, os mandatários esbanjaram ignorância, arrogância, além de sinalizar o que significava o lema entoado na campanha eleitoral de 2018: “eu quero meu Brasil de antes”. A começar pelo versátil e especialista em todos os temas, o vice hiperativo Mourão lançou o país de volta ao padrão explicativo dos anos 80 ao que afirmar “não existe racismo no Brasil”. Mourão realizou um feito notável, que foi o de espalhar uma lorota que nem meus alunos nascidos nos anos 2000 caem mais. Ao dobrar a aposta, não deixa de ser estranho que na semana de consolidação da derrota de Trump nos Estados Unidos, Mourão afirme que o racismo “é uma coisa que querem importar”. Será? Será que vamos importar ideias dos States e derrotar o nosso Trump da série B? A ver…A grosso modo, o pacto político em que 26 Estados brasileiros cedem parte de sua soberania a um governo central, meus alunos sabem, se chama federalismo. Ideia importada dos Estados Unidos e que parece funcionar relativamente bem no Brasil.

Qual o problema de se importar boas ideias, Mourão?

A fim de perpetuar os nossos níveis de desigualdades, grupos da sociedade buscam ativar uma metonímia que transforma o país num comboio que só possui farol alto. A filosofia consiste em fazer uso de um “idealismo abstrato” e em negar todo conhecimento disponível para a resolução concreta dos problemas. Assim, enquanto o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 79,1% das vítimas em intervenções policiais são negros e que o perfil médio do policial assassinado (em São Paulo, embora 35% do efetivo, 65% dos policiais assassinados são negros) também não se distingue muito do padrão de violência geral, o presidente desconsidera o fato de que a letalidade se volta sobre os mesmos coletivos que foram perseguidos e controlados durante o período do escravismo brasileiro. Em vez de compaginar os dados publicados pelos relatórios das Secretarias de Segurança dos Estados com a apresentação de soluções concretas para o mal da violência, Bolsonaro pôde se dar ao luxo de dizer simplesmente que “problemas como o da violência são vivenciados por todos, de todas as formas”.

A julgar pelas evidências contidas em explicações deste tipo, o Mito só agrava o quadro, ao mesmo tempo que destroça as expectativas mínimas de exposição racional das soluções para os problemas de violência que assolam o país. Um homem, um brasileiro, um afro-brasileiro saiu de casa pra fazer compras… e teve a vida aniquilada, bem à vista de todos. Uma pena que o impacto do abatimento fatal deste homem, manifestação de um problema caro à população negra, fração majoritária deste território, receba o tratamento lacônico

subsumido na frase: como homem e como Presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor”. Com o farol alto demais talvez o presidente não tenha conseguido enxergar os relatórios que estão no seu próprio colo. O Sr. não é daltônico, presidente. Farol alto demais cega… Tem muita gente que não é daltônica. É cega mesmo!


ALESSANDRO VENTURA DA SILVA é Doutor em História, pela Universidade de Paris III; professor, tradutor e consultor.