Redação

O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002. Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi “inaceitável”. O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.

Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que “o alarme precisa ser dado” porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual. No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).

Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa “se transformar num líder político”, porque hoje “conhece o caldeirão” [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) “conhece o poder”. O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.

Como o senhor vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.

Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.

No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.

Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.

Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.

Mas o senhor vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: “Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa”. O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.

Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.

Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.

Governadores escrevem carta contra o presidente, Maia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o senhor vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.

Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.

Como o senhor vê a atuação do Paulo Guedes?
Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.

Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.

Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.

Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.

Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.

O senhor promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.

O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.

Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.

E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.

E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.

E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.

Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.

Em 1995, o senhor enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O senhor faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.

Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.

Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.

A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos. O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.


Fonte: Folha, por Igor Gielow