Redação –
Um programa beneficente liderado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, repassou, sem edital de concorrência, dinheiro de doações privadas a instituições missionárias evangélicas aliadas da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos).
Beneficiada com R$ 240 mil, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) foi indicada por Damares para receber os recursos, segundo documentos do programa Pátria Voluntária, comandado por Michelle. A AMTB consta do site da Receita Federal e em sua própria página na internet com o mesmo endereço de registro da ONG Atini, fundada por Damares em 2006 e onde a ministra atuou até 2015. A Folha esteve no local, onde funciona um restaurante desde novembro do ano passado.
ARRECADAÇÃO – Criado por decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em julho do ano passado, o Pátria Voluntária é coordenado pela Casa Civil e tem como objetivo fomentar a prática do voluntariado e estimular o crescimento do terceiro setor, arrecadando dinheiro de instituições privadas e repassando para organizações sociais. Os recursos das doações repassadas às ONGs são oriundos do projeto “Arrecadação Solidária”, vinculado ao Pátria. O programa já consumiu cerca de R$ 9 milhões dos cofres públicos em publicidade pagos pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência.
Duas organizações filiadas à AMTB também receberam verbas de doações sem que houvesse um edital público. O Instituto Missional, com R$ 391 mil, e o SIM (Serviço Integrado de Missões), com R$ 10 mil. A AMTB e o Missional foram as que receberam os maiores repasses até agora. Todos os recursos foram destinados à distribuição de cestas básicas “a famílias vulneráveis”.
Com sede em Maringá (PR), o Instituto Missional é dirigido por Weslley Kendrick Silva, um empresário que tem fotos em seu perfil no Facebook em confraternização com Damares e o secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de Damares, Maurício Cunha. Cunha dirige a ONG CADI (Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral), filiada à AMTB. Segundo a Casa Civil, a definição de quem recebe os recursos do programa do governo ocorre “no âmbito do Conselho de Solidariedade”, que foca em projetos que beneficiam grupos mais vulneráveis à pandemia do novo coronavírus.
RECURSOS – A ata de uma reunião do programa, obtida pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação, mostra que Damares apresentou o nome da AMTB para receber os recursos do programa de Michelle. O documento foi elaborado durante um encontro do Conselho de Solidariedade, composto por representantes dos ministérios da Mulher, do Desenvolvimento Regional, da Ciência e Tecnologia, Casa Civil e Secretaria de Governo.
A Fundação Banco do Brasil, que apoia o programa, também faz parte. A reportagem pediu a prestação de contas das organizações à Casa Civil, que respondeu que é realizada para a Fundação Banco do Brasil. Já a fundação respondeu que “informações relativas à prestação de contas são remetidas pela Fundação BB à Casa Civil, conforme previsto no acordo firmado entre as partes”. “Desta forma, a solicitação deverá ser feita à Casa Civil”, disse.
Segundo o registro da reunião do dia 11 de maio, a secretária-executiva do programa, Adriana Pinheiro, disse que a AMTB “foi apresentada pela ministra Damares por ser uma entidade séria, que trabalha há muitos anos com esse público e possuem potencial para chegar a essa população mais distante”.
PREOCUPAÇÃO – A secretária-executiva adjunta do colegiado, Pollyana Andrade, completou que a AMTB “é uma organização que tem muitas outras vinculadas a ela, e isso faz com que ela tenha um potencial muito grande para chegar a este público”.O presidente da Fundação do Banco do Brasil, Asclépius Ramatis, chegou a manifestar preocupação com o repasse durante a reunião. Ele disse não ter certeza se a AMTB poderia receber a verba por ter “caráter religioso”.
Pollyana, no entanto, relembrou que, em discussões anteriores com a Fundação Banco do Brasil, foi dito que, para ações emergenciais, haveria exceção. Antes da reunião do conselho em maio, Damares já havia se encontrado com representantes da AMTB no dia 18 de abril, por videoconferência, para discutir o projeto.
Desde abril, foram arrecadados R$ 10,9 milhões, dos quais R$ 4,3 milhões foram aplicados até agora sem um edital público. Segundo a Casa Civil, o programa passou a fazer chamamento público para o restante das doações. Os dados são disponibilizados em um painel do programa.
REGISTROS – Uma das ações de entrega de cestas do Instituto Missional foi acompanhada por uma equipe da Folha, em julho, a convite da entidade. Quem definiu quais famílias seriam beneficiadas foram os pastores locais parceiros do projeto. “Eles conhecem a realidade e são orientados a ajudar quem mais precisa. As doações são registradas com fotos”, justificou o diretor do instituto, Cassiano Luz, na ocasião. Luz é o atual vice-presidente da AMTB, onde já atuou também como presidente.
O diretor disse que a entidade foi procurada pela AMTB, a partir de um convite feito pelo Pátria Voluntária, “para colaborarmos em uma ação emergencial de distribuição de alimentos na região dos rios Japurá e Juruá, Estado do Amazonas”.
“Ficamos honrados e motivados com a oportunidade, tendo em vista nosso desejo ‘missional’ de servir aos mais vulneráveis”, disse. Segundo a Casa Civil, os repasses são feitos a associações privadas “aptas a receberem recursos descentralizados pela Fundação Banco do Brasil e oriundos de doações recebidas pela Arrecadação Solidária”. O restante arrecadado, segundo o órgão, está comprometido “com ações selecionadas pela Chamada Pública 01-2020, que se encontra na fase de acolhimento das propostas selecionadas”.
OUTRO LADO – A assessoria do ministério de Damares respondeu que a AMTB “é uma entidade que reúne mais de 50 instituições com capilaridade em todo o território nacional para apoiar as ações do programa Pátria Voluntária”.
“Desta forma, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) entende que o atendimento aos povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas será efetivo e de qualidade com a parceria com entidades com esta finalidade, como ocorre com as Santas Casas de saúde em todo o Brasil”, disse.
“O repasse de recursos pela Fundação Banco do Brasil, portanto, deve levar em consideração o critério de efetividade das ações, no espectro mais amplo possível que o Pátria Voluntária se destina, critério este que o MMFDH vem se pautando na indicação das entidades capazes de apoiar e desenvolver os objetivos do programa”, completou.
PODER DECISÓRIO – Damares também informou que a secretaria de Maurício Cunha “não participa das decisões e, tampouco, opinou sobre a alocação de recursos oriundos do Pátria Voluntária para qualquer instituição”. “Ressalta-se, ainda, que o CADI não recebe e nem repassa recursos financeiros para a AMTB”, disse.
Procurada, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência não respondeu sobre quais foram os critérios utilizados para essas entidades receberem os recursos e nem sobre a relação entre as ONGs. O presidente da AMTB, Paulo Feniman, disse que a organização não funciona mais no local apontado pelo site e que este poderia estar desatualizado. O endereço foi retirado do site após o contato da reportagem. Ele justificou que “por ser uma associação, a AMTB só tem endereço fiscal”.
EQUIPE ESPALHADA – “A operação da AMTB hoje está dividida entre Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo, porque a nossa equipe está espalhada”, disse. Ele afirmou também que a AMTB não foi beneficiada pelo programa, “mas executora de uma ação”. Além disso, respondeu que não há relação entre a sua associação com a Atini, mas que esta tinha uma sala alugada no mesmo imóvel onde a AMTB funcionava. “Eles não tinham expediente presencial no prédio”, disse.
A Atini também respondeu que a organização e a AMTB não possuem qualquer vínculo, “tendo apenas dividido espaço de trabalho”. Disse também que a saída de Damares do grupo “se deu pelo fato de a ministra estar engajada, naquele momento, em várias frentes ligadas aos Direitos Humanos”.
Fonte: Folha de SP
MAZOLA
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