Por Roberto Amaral –
“Eles empurraram a porta, não encontraram nada. Empurraram outras duas portas, não encontraram resistência nenhuma. E assim foram ocupando toda a casa”.
(Leonel Brizola, depoimento de 1987)
A transição da tutela para o exercício direto do poder, ali um movimento tático, aqui uma estratégia, é projeto da caserna que incomoda a República representativa desde o golpe de 1889, embora suas raízes ideológicas remontem à Guerra do Paraguai e à “questão militar”, artificialmente forjada pelos fardados. Nos anos seguintes, da ditadura Deodoro-Floriano, inaugurais da República, o exercício do poder castrense seguiu a regra, dispensando intermediações, e assim caminha até o grande acordo da lavoura, que possibilitou a eleição de Prudente de Morais, e os governos conservadores que se seguem. Com eles sobrevivem as oligarquias rurais – o conhecido consórcio entre a pecuária mineira e o café paulista, subsidiado pelo conjunto da economia do país, para poder encontrar preço no mercado exterior. Por muitos anos essa foi nossa única fonte de divisas.
Esse mando do atraso, a preeminência da falsa “vocação agrícola” do Brasil, logrará sobreviver mesmo à modernização varguista, ditada de cima para baixo, pois a via prussiana é o único modelo que as ditaduras professam. No Nordeste e no Norte sobreviverá mesmo aos anos JK, quando o país opta pela industrialização.
O primeiro enfrentamento republicano nasce com a dissidência inter-oligárquica que a história registrou como “revolução de 1930” e suas diversas e distintas fases, sempre sob o comando de Getúlio Vargas: o governo provisório (1930-1934), o intermezzo constitucional consentido (1934-1937) e, na consolidação do regime, a ditadura de 1937-1945, o “Estado Novo”, como se denominava, copiando a titulação do salazarismo. O estrategista é Getúlio Vargas, o concerto militar é encargo do general Góes Monteiro, e a formulação doutrinária coube ao jurista Francisco Campos, também conhecido como Chico Ciência, redator da Carta de 1937 e, vinte e sete anos passados, autor do Ato Institucional com o qual a ditadura militar se anunciava ao mundo, como fonte, ela mesma, de seu poder. Na efetividade da força procurava sua legitimação.
O Movimento de 1930, embora tenha tido como estopim a sucessão de Washington Luís, foi precedido de uma série de levantes militares, no seu conjunto carentes de programas políticos. Seu leitmotiv era a “moralização dos costumes” e a “verdade eleitoral”, quando a fraude mais desabrida campeava em todos os pleitos, das províncias à presidência da República. A artimanha que campeou em 1930, despindo o pleito de qualquer grama de legitimidade, não foi maior nem menor do que a corrupção reinante em todo e qualquer processo eleitoral anterior, sem peias às insurreições militares que vão preparando a ambiência política que terminará por tornar, por assim dizer, natural e necessária a fratura de 1930.
São insurreições como o Levante do Forte de Copacabana (1922) e em 1924-1925 a coluna Prestes-Miguel Costa, de onde sairia o estado-maior de 1930. O que, porém, não livraria o novo regime, de base de sustentação militar, de enfrentar contestações armadas como a insurreição paulista de 1932, o levante militar comunista de 1935, e a intentona integralista de 1938.
Os mesmos generais que haviam implantado a ditadura serão aqueles que, no seu esgotamento, e trazendo para casa as lições políticas assimiladas nos palcos da Europa em guerra, ditam sua sentença de morte, com a deposição de Getúlio Vargas em 1945, após 17 anos de mando direto e absoluto da caserna. No período que se segue, até o Golpe de 1964, os militares são levados a partilhar o poder com os civis. É o período do retorno da tutela, que, nada obstante os seguidos recuos do poder civil, consome-se numa relação pontilhada de choques com a legalidade democrática que se resolve na ditadura de 1964, ou seja, com a retomada do poder direto.
O balanço é esse: poder direto, como até 1945, ou tutela, como até hoje, desde o recuo a que se concedeu a ditadura em 1985. Ao todo, no século passado, o mando direto dos militares soma 38 anos, a que se seguem a concordata de 2018 e a intentona frustrada de 8 de janeiro de 2023.
Mesmo a preeminência da tutela não foi suficiente para pôr em ordem a caserna, autoritária e indisciplinada. A crônica dos anos seguintes à redemocratização de 1945-1946 é uma catalogação de “pronunciamentos” de comandantes e clubes militares sobre as mais variadas questões do cotidiano da vida nacional, que vão de discussões sobre os valores do salário-mínimo dos trabalhadores, até a legitimidade de pleitos eleitorais, questionada, na democracia representativa, a soberania popular.
Nesse período historicamente curto que caminha da queda do Estado Novo ao golpe de 1964, dois presidentes da república foram depostos por levantes militares, um deles tendo sido levado ao suicídio; um presidente renunciou, dois outros foram cassados, um foi condenado à prisão. As forças armadas seguidamente tentaram impedir a posse de presidentes consagrados em eleições livres. Em 1955 o veto se aplicava a Juscelino Kubitschek, e assim tivemos o golpe e o contragolpe de 11 novembro, além de dois levantes de oficiais da Aeronáutica. Em 1961, no episódio da renúncia de Jânio Quadros, a truculência militar teve como alvo o vice-presidente constitucional, João Goulart, cuja posse foi vetada. Para consenti-la, os militares, tendo à frente os três ministros fardados, impuseram ao Congresso, genuflexo, a revogação do presidencialismo com a implantação de um parlamentarismo de fancaria, afinal revogado por referendo em 1963. Mesmo dispondo de poder absoluto, a caserna conservou-se indisciplinada. Não foram poucos os golpes levados a cabo ou intentados mesmo no regime de 1964.
Os fatos desnudam a fragilidade da reconstitucionalização de 1985 e os idos de janeiro de 2023 nos mostram, mais uma vez, que nossa democracia é uma florzinha muito frágil que precisa ser regada todos os dias, como receitava Otávio Mangabeira.
As traficâncias visando à deposição de Jango, cujo objetivo era, no fundo, a retomada do mando direto, começaram mesmo antes da posse vice-presidente. Garrastazu Médici (SCARTAZI, A.C, Segredos de Médici. São Paulo. Marco Zero, 1985), ditador luciferino, fala do fio da meada: “Aquela conspiração de 64 nós começamos em 61, com a renúncia de Jânio”.
Na longa preparação do golpe militar (que não lograria êxito se não contasse com a adesão dos meios de comunicação), a reação criou na sociedade brasileira a versão de que o Presidente João Goulart estava preparando um golpe contra a democracia, que seria engolfada, com nossas liberdades, por um projeto bolchevista. Seria o primeiro na história a ser comandado por um estancieiro.
A verdade, porém, é que o presidente João Goulart não dispunha, em 1964, de esquema militar de qualquer natureza, seja para defender-se do golpe que se anunciava em prosa e verso, seja para ele próprio romper com a legalidade, salvando seu governo, como o aconselhavam oficiais fiéis e à frente de tropas, como o general Osvino Alves, do então 1º Exército, sediado no Rio de Janeiro. Pois o decantado “dispositivo militar do general Assis Brasil”, se não era um alçapão, era sem dúvida uma trágica farsa. Com absoluta certeza, e catando a melhor das hipóteses, tratava-se, o engalando chefe da Casa Militar, de um general absolutamente inepto (na definição precisa de Almino Afonso), como parece ser seu símile no quase desastrado início do governo Lula, atarantado, andando sem rumo pelos corredores do palácio do Planalto diante do avanço das hordas fascistas ensandecidas.
O famigerado “dispositivo do general Brasil” foi desmontado em horas, por uma mera coluna de praças que não foi enfrentada, uma tropa militarmente irrelevante, sob o comando de um general de brigada sem qualquer brilho. Quando chegou ao Rio, o general Mourão (que se autointitulava “vaca fardada”) nada mais tinha por fazer: o governo, sem ensaiar qualquer resistência, já havia caído e não restava mais uma só poltrona para o comandante a caminho da reserva. Assim, os militares abancaram-se no poder, trotaram pelas avenidas e ruelas da democracia como o cavalo de Átila, deixando como rasto uma democracia esfrangalhada.
O golpe, em sua fúria, foi o arrombar de portas escancaradas. Apesar de haver encontrado o campo inimigo renunciando à luta, os militares se esmeraram na violência a mais desabrida, na tortura e nos assassinatos, ainda hoje por serem contados e sempre impunes.
Almino Afonso era, naquele março, um dos políticos mais influentes do país. Líder estudantil, deputado federal, ministro do trabalho de Jango e, naquela altura, líder da bancada do PTB (partido do presidente da República) na Câmara dos Deputados. A narrativa que segue é fatual, por isso importantíssima. É um só arrolar de fatos anotados por um observador privilegiado. Recorro ao seu livro “1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart”, que ainda hoje aguarda uma editora apta a comercializá-lo condignamente.
Naquela manhã de terça-feira, 31 de março, contrariando o cotidiano, a Câmara dos deputados, que só se reunia à tarde, estava superlotada e envolta num burburinho. Circulava a notícia de que o gal. Mourão havia se levantado em Juiz de Fora, e marchava na direção do Rio de Janeiro. Nada se sabia em nosso campo. Almino se dirige à casa do líder do Governo, senador Arthur Virgílio Filho, também carente de qualquer elemento de informação. Decidem, então, falar com o presidente, que se encontrava no Rio, no Palácio das Laranjeiras.
Indagado, Jango desqualifica as versões do levante como uma tentativa da oposição de tumultuar o ambiente político. Os fatos são reduzidos a boatos, apenas isso. Os parlamentares insistem, e então, Goulart chama o gal. Brasil (relembro: chefe da Casa Militar), quando se trava o seguinte diálogo, segundo a memória de Almino:
“Presidente (dirigindo-se ao gal. Brasil): O que há de verdade na sublevação do general Mourão filho?
Gal. Brasil: Tudo fantasia, presidente. Trata-se de uma marcha de rotina, como é de hábito no exército.
Presidente (insistindo): Nada mais?
O general Brasil: Nada além disso.
O presidente: Tu ouviste, Arthur? Pois é essa a verdade!”
Esse deplorável diálogo, retrato da abulia do governo, teria ocorrido entre 10 e 11h. À volta do almoço, Almino se depara com o avanço dos acontecimentos.
Nenhum sinal sobre a vida do governo.
Por volta das 18h desse longo dia, o presidente, ainda à margem do que ocorria na República e em seu próprio entorno, recebe no Palácio das Laranjeiras, edificação quase colada ao Palácio da Guanabara, onde se aquartelara o governador Carlos Lacerda, as visitas do general Peri Bevilacqua e do brigadeiro Correia de Melo, enviados, a mando do gal. Castello Branco, “na missão de restabelecer a paz nas fileiras”.
Desta feita a pauta segue o depoimento do Gal. Mourão (Memórias, o depoimento de um revolucionário. Porto Alegre. L&PM:1978): “Cerca das 18hs, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, pediu licença e deu ao dr. Goulart um bilhete que ele leu. Finda a leitura, antes que o Gal. Bevilacqua recomeçasse, o dr. Goulart lhe disse: “Gal, o general Mourão Filho revoltou a 4ª. Região Militar em Minas Gerais e pede minha renúncia”.
A insurreição fôra para a estrada na madrugada de 31/03. Só ao final do dia, após às 18h, é que o presidente foi informado do golpe, já consolidado.
(Colaboração Pedro Amaral)
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org
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