Por Lincoln Penna –
O Brasil tem enfrentado um processo deliberado de desfazimento, uma vez que não conseguiu construir um Estado Nacional capaz de amparar o seu povo, cuja nação formatada jamais acolheu a sua diversidade. Povo e nação possuem identidades, valores e hábitos cultivados ao longo de suas existências. No Brasil, não há um único povo/nação, mas diversos povos/nações, que coexistem sob o domínio absoluto de um deles, o que se formou pela via da ocupação territorial, o europeu e seus descendentes que aqui se estabeleceram.
A história dessa convivência com as demais nações autóctones foi difundida por esses colonialistas, sem que tivéssemos até hoje maiores conhecimentos dos nativos da terra. Expulsos do litoral, massacrados quando era necessário para os interesses mercantis, submetidos ao processo de aculturação e com isso subtraindo-os de suas raízes fundadoras, os assim chamados índios não foram recepcionados pela empresa que se constituiu exatamente para pilhar os recursos e riquezas da terra.
Dos mais de cinco milhões de povos que viviam no espaço que forma o Brasil, hoje sobrevivem cerca de um milhão. Contingente ínfimo se comparado com a população brasileira, diriam alguns herdeiros do genocídio dos indígenas, mas contingente este riquíssimo em termos étnicos, culturais e humanos. Mais do que isso, são centenas de povos, alguns quase extintos, que representam um universo incalculável de representações de um passado que tem sido aniquilado pela modernização imprimida pela ânsia do ganho material, mesmo à custa de vidas.
Pensar em um Projeto Nacional de verdade é incorporar esses povos/nações de modo a assumirmos a identidade de um Estado plurinacional formado por todas as etnias que se encontram espalhadas em nosso território, seja sob a forma de reservas indígenas ou não, mas à mercê de inescrupulosos interesses à cata do saber desses povos seculares para melhor explorar as terras, que originalmente lhes pertencem.
Como conformar esse Estado é um desafio que deve ser enfrentado pela inteligência de todos os povos envolvidos nessa engenharia política e institucional. Mas é um primeiro passo para que tenhamos de fato uma representação nacional, pois não basta o avanço alcançado pela Constituição. Foi importante, porém é necessário mais do que o reconhecimento da existência das comunidades indígenas.
Essa questão tornou-se urgente em face da devastação ultimamente dos biomas brasileiros, especialmente da Amazônia, onde se encontra a maior concentração de povos e nações indígenas. A emergência do fator climático alterando a cada ano que passa o ambiente terrestre tem sido acrescida com a constante ameaça nas políticas que vão de encontro às reservas indígenas, cuja existência além de legalmente reconhecidas constitucionalmente são as que protegem o meio ambiente diante da fúria de madeireiros, mineradores ilegais, grileiros e pecuaristas não legalizados.
Não há como elaborar um projeto que dê conta da realidade nacional brasileira sem incorporar os nossos irmãos indígenas, assim como todos os povos da floresta, cuja representação maior foi Chico Mendes. Assassinado dois meses após a promulgação da Constituição, em dezembro 1988, hoje em dia é símbolo do interesse nacional de um país que deseja alcançar sem concessões a soberania tão perseguida e ainda longe de ser totalmente consolidada como desejamos. Pois não há soberania nacional que não seja necessariamente popular. E o vocábulo popular abrange todos os povos e nações que habitam um território devidamente demarcado.
Nesses tempos de pandemia, nesses tempos de reacionarismo sem freios que destila ódios a tudo e a todos que lutam e resistem diante da ofensiva de uma nova onda de intolerância é preciso que tenhamos a determinação de passar a limpo o país, como dizia com humor e com destemor o antropólogo e professor Darcy Ribeiro. E para passar a limpo, intuía, é imprescindível apagar o estrago feito pelos antepassados e atuais vilões que detestam a diversidade.
Estamos também próximo do bicentenário da Independência do Brasil. Há duzentos anos obtinha-se o que o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos chamou de aquisição da forma nacional, isto é, não logramos alcançar a soberania que inclusive nos custou um pagamento aos portugueses para que fosse o Brasil reconhecido pela metrópole lusitana. No centenário, abriu-se um debate sobre o que tínhamos sido, sem que se considerasse, por exemplo, o legado escravocrata. É hora de se pensar nesse vindouro bicentenário, em 2022, não apenas na eleição de um novo presidente neste ano, mas em um Projeto Nacional, que o eleito se obrigue a se identificar e cumprir, sem o que continuaremos a ser eternamente o país do futuro.
E de outro, os muitos casos recorrentes de lutas no campo que têm gerado ameaças àqueles que se mantêm insensíveis à justiça social num dos países mais desiguais do mundo.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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