Por Lincoln Penna –

Título I
Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º
Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição.

Diante do quadro cada vez mais ameaçador à democracia é necessária a formação de um amplo movimento em defesa do Estado democrático de direito. Na prática, ele já existe. Vozes e manifestações têm sido realizadas a demonstrar a repulsa e a indignação de parcelas majoritárias e influentes da nação brasileira. Todavia, ainda é insuficiente, porque as forças que operam as sucessivas ameaças ao pleno desempenho das instituições políticas não fazem outra coisa senão agredi-las.

Quando da promulgação da Constituição, em 1988, as tendências democráticas de todos os matizes políticos a receberam como um instrumento da verdadeira legalidade. Aquela que não é imposta por governos autoritários, mas oriunda de uma ampla representação reunida quando da Constituinte que a elaborou. Com ela, formalmente se deu o fim do ciclo ditatorial. Contudo, não se encerrou o temor de novas investidas daquele nicho que cresceu durante a vigência do estado autoritário iniciado em 1964 e aprofundado em 1968 com a edição do A.I-5.

A prevalência dos aspectos a traduzirem a defesa das liberdades democráticas asfixiadas ao longo dos anos do domínio dos militares em conluio com os grupos empresariais e financeiros acabaria por ceder cunhas que tem favorecido interpretações golpistas. O artigo 142 que dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem é freqüentemente lembrado para deixar clara a possibilidade de intervenção das Forças Armadas. Essa lembrança tem suscitado e estimulado tensões a toda hora por parte de quem tem saudades dos tempos da repressão, pelo poder que ostentavam a revelia das leis.

Não há mais como tergiversar. Ou bem se coloca um vigoroso basta às tentativas de retorno da ditadura, ou estaremos sem querer sendo cúmplices passivos de uma tenebrosa manobra com fortes inícios de integrar uma escalada destinada a impedir avanços na direção de estados democráticos e soberanos na região integrada pelo povo latino americano. Se há a ameaça de ingerência interna por parte de quem deveria salvaguardar a democracia, o que dizer da ingerência externa com vistas a impedir a verdadeira independência dos países da região?

A política de confronto contra os sustentáculos da soberania nacional vem de longe, como é sabido. Porém, suas mais recentes incursões derivam de estratégias que dispensam o uso sistemático das armas bélicas substituindo-as por armas de alcance mais eficientes porque agem na formulação de conteúdos difundidos pelos canais midiáticos com o auxílio de engenhos mais sofisticados, nem sempre percebidos pela grande maioria dos indivíduos cada vez mais individualizados em seus afazeres triviais em face de novas e crescentes necessidades.

Deem o nome de imperialismo de novo porte, de neoliberalismo, ou de modalidade tecnologicamente mais usual, o fato é que de novo se instala a convivência de interesses de fora com os de dentro do país.

Em outras palavras, a permanente dependência na esfera do capitalismo entre as burguesias que dominam o centro das atividades do sistema mundial, e as que cumprem o papel de satélites pouca importância ou compromisso com os reais interesses nacionais. Assim foi no nosso passado remoto, assim tem sido no nosso passado recente. Cabe, então, a pergunta. Por que juntar interesses distintos, quando o do povo nada tem a ver com os engravatados senhores das bancas financeiras e detentores do poder de mando num mundo do capital?

É que está em jogo o princípio da defesa de protocolos civilizatórios, sem eles estamos lentamente mergulhando no vazio alucinante do vale tudo onde os milicianos que atuam nas beiras e agora também no centro dos poderes acabam governando suas próprias necessidades de expansão. De modo a aprisionar a sociedade civil, que se torna refém desse poder de fato. Com isso, torna-se necessário um movimento só comparado ao que se passou durante a guerra contra o nazi-fascismo.

Naquela ocasião foi possível reunir todos, patrões e empregados, religiosos e ateus anti-religiosos, comunistas e conservadores reacionários, mas antifascistas; e até líderes de uma Guerra Fria que se encontrava em germinação e que se fez presente logo após a derrota da Alemanha de Hitler. A humanidade, no que ela tem de convivência com a diversidade, estava em jogo contra a fúria de um projeto demolidor. Isso foi o bastante para unificar todo mundo.

Deixar de lado momentaneamente os pruridos de cunho ideológicos de lado, mas fazê-los funcionar quando preciso, e agir de acordo com as prioridades do momento, eis a tarefa política mais urgente. E esta consiste na remoção do entulho autoritário não tocado pelos constituintes e as ameaças dos saudosos da ditadura, cuja teimosia pela volta ao passado precisa ser impedida. Mas ao se associar às correntes conservadoras que detêm o poder econômico, não cair na tentação da conciliação de classes. Uma disposição genuína e equivocada por parte das correntes populares não deve ceder aos encantos de uma união duradoura provocados pela história, que costuma punir os erros de sempre.

De resto, cabe acrescentar que esse movimento de unidade em torno do que temos de legalidade formal não significa que o povo organizado continue nas ruas. Ao contrário. Transformar essas manifestações em algo mais do que palpável, concreto, só mesmo as urnas. Para reafirmá-lo ou então que a força de um movimento de massa consiga a despeito dos tempos de pandemia impedir a continuidade do gerente dessa ação de desmonte nacional, que representa o mais terrível retrocesso político que se tem conta em nossa história.

 


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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