Por Cristina Sant´Anna

Foi num 13 de maio, há 140 anos, que nasceu o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto. Como sua fã incondicional, a ponto de ter o escritor tatuado em meu braço, quero, neste artigo, explicar o porquê de o autor precisar ser lido sempre. Sempre mesmo.

Então, por que Lima Barreto?

Lima Barreto porque, pra começar, sua obra é sinônimo de inconformismo e resistência.

Porque a literatura é sua nau e a questão com a qual se bate Lima Barreto em sua obra é a da legitimação da solidariedade num mundo em crise, em que o saber e o poder se configuram como um discurso científico prepotente e superior. De todas as atividades humanas, Lima Barreto atribuía à arte e, em particular, à literatura, essa missão de unir os homens acima de todas as diferenças.

Romancista e cronista dos mais importantes da Primeira República, Lima Barreto foi também um escritor engajado. Uma de suas armas de engajamento foi a ironia. Usou muito dela, do deboche, muito próximos da caricatura, para escrever. Muitos de seus críticos consideravam, inclusive, que a ironia desqualificava e tornava superficial seu trabalho. Mas a ironia, a meu ver, estaria dentro de um projeto do autor de simplificar o cânone literário de sua época, tornando-o acessível a qualquer um, de modo a desvinculá-lo do projeto neoclássico de rebuscamento e torvelinho tão ao gosto de outros escritores de seu tempo, como Olavo Bilac e Coelho Neto. O humor e o riso eram uma forma toda sua de mostrar as contradições e o descaso da Primeira República brasileira, relativo à gente pobre e miserável da então capital republicana. O riso em Lima Barreto se aproxima da caricatura, uma das formas mais pujantes e abstratas da arte.

Porque esta opção pelo deboche em boa parte de sua obra, como meio de engajamento, deu-se por ele compreender o papel do escritor como um utilizador da literatura como meio de combate e alguém que pudesse tratar das aflições da humanidade, sem se descuidar, contudo, do viés estético.

Porque Lima Barreto quis ser — e foi — o escritor que nos comove e que nos conta de onde veio, para onde vai e o que quer nos dizer, sem meias palavras. Palavras levadas a ferro e fogo pelo escritor, que penhora sua obra em prol de compromissos que desejou assumir com a coletividade ou com uma parcela determinada de uma sociedade com a qual se solidariza, usando como arma de combate a literatura, que dizia ser sua esposa muito amada e engajada.

Porque uma literatura dita engajada e seu escritor põem à mostra de forma permanente a ética, aplicando-a ao fato literário, pois escrever literatura é um ato público, não se estando diante somente da arte pela arte. Do deleite, apenas.

Porque o sentido de engajamento, então, seria capaz de interpretar os anseios profundos de uma época e o escritor e sua literatura dita engajada seriam capazes de decodificar e de recodificar a palavra, a linguagem (ou linguagens), instrumentos sociais por excelência.

Porque a obra de Lima Barreto se centrou na denúncia a intelectuais que considerava apartados dos desvalidos, sem marcas de solidariedade a eles, pela escrita.

Porque, para Lima Barreto, o sentido de engajamento é aquele insistentemente exemplificado no temário social. Sua narrativa encerra um forte sentido de participação social. Nas linhas e entrelinhas de seus escritos há um senso vivo de humanidade. Sua argumentação se constrói a partir da observação de jogos de poder, relações políticas e suas consequências na sociedade.

Porque Afonso Henriques de Lima Barreto viveu em um contexto marcado por transformações substanciais, relacionadas à configuração da sociedade capitalista no Brasil. O autor ligou, então, em seus escritos, pela linguagem simples e direta, o político, o social e o econômico ao ideológico. Conseguiu, com sua intertextualidade, penetrar a fundo na ambiência de toda uma época, revelando por inteiro a mentalidade desta época.

Porque sua obra de amplo espectro é um documentário fundamentado de um sistema que passou de uma sociedade escravista, para uma falsa democracia republicana (sustentada por oligarquias) que segue conosco até hoje. Composição de poder e força que Lima Barreto considerava um anátema.

Porque ele foi também um pensador social de seu tempo: analisou, por intermédio de sua obra, o centro do poder do país, tendo como ponto de observação (e de interpretação) a cidade-capital da República brasileira. Sua visão aguçada e crítica detectou o artefato da modernidade pelas aparências, instalado pela ordem republicana, no jugo de poder levado a termo pela elite do país.

Porque ao autor deve-se o mérito de consagrar questões de ordem social à sua narrativa, bem como seu entendimento e sua defesa da arte literária como fenômeno igualmente social, em razão de estar imbricada na cultura, além de ser considerada por Lima Barreto um instrumento de união e compaixão entre as gentes.

Porque Lima Barreto fundiu sua identidade pessoal e à do autor que ele foi à identidade do país. A identidade que considerava ideal como resposta para o fortalecimento da construção de um projeto de nação brasileira democrática e multiétnica que poderia ser fornecida pela literatura, literatura que se forjou à ideia do autor de congraçamento da humanidade.

Primeiro autor brasileiro a se definir como negro, Lima Barreto não construiu uma literatura somente negra, mas negra, inclusive, pois foi como um negro nascido em um país racista e defensor de um projeto de branqueamento nacional, que Lima Barreto percebe a realidade, enfrentando-a com engajamento e resistência. Ele próprio pagou a publicação de seus livros, para fazer sua literatura engajada, isto é, aquela que se configuraria numa forma de comunhão entre os homens. Os personagens citadinos e metafóricos que criou mostraram toda a mentalidade burguesa, com suas fraquezas e alienações, que predominou no Brasil nos primeiros 30 anos da vida republicana.

Nem poderia ser diferente porque, para Lima Barreto, a arte tinha a função sociológica de promover a compreensão dos processos da existência humana. Sua obra representou (e ainda representa) um contraponto às fontes oficiais da Primeira República com seus modos e meios de fazer política, com sua arquitetura afrancesada, seu urbanismo de derrubada do ontem e com sua dependência ao capital estrangeiro e à especulação imobiliária. A degeneração da cidade e, em consequência, de seu povo, não escaparam ao olhar crítico e ironicamente engajado de Lima Barreto. As transformações urbanas de ocupação e a dita organização do espaço urbano foram criticadas pelo autor, não só pelo desalojamento dos pobres, mas por representarem a transformação de parcela da sociedade da época, que desejava mostrar e perpetuar um estilo de vida que evidenciasse uma marca de classe: a de classe superior na hierarquia social, moradora de uma cidade plena de marcas de luxo e riqueza.

Porque a obra Lima Barreto atrai, ainda hoje. Ao se iniciar sua leitura, quase que imediatamente, estabelece-se uma espécie de pacto entre o autor e seu leitor, em virtude das eficácia, atualidade e vitalidade de sua narrativa do cotidiano. No decorrer da leitura, ocorre uma diluição de limites, de barreiras e a linguagem da narrativa flui intertextual. Suas narrativas críticas se enredam às narrativas do cotidiano.

Por que Lima Barreto, pergunto eu, de novo: Porque lê-lo é maravilhoso e desconcertante. Porque de Lima Barreto está tudo aí, na nossa frente, pulando em nosso colo: planos mirabolantes para ruir a saúde pública, doença, morte, assassinatos de gente pobre. A atualidade de seus escritos nus e crus sobre miséria, calhordice, omissão e indiferença é flagrante. Porque sóbrio ou caindo de bêbado nas ruas, em casa, lendo na biblioteca que virou seu quarto — a Limana — como a chamava, ou sem poder sair, no inverno, por não ter roupa de lã e as calças estarem lavando, Lima Barreto pode ser considerado como um poderoso remédio para a memória e um estimulante para o engajamento por princípios éticos. O autor sempre defendeu visceralmente seus pontos de vista, escolhendo retratar, em sua obra, o lado dos oprimidos, dos desvalidos, malsãos, dos violentados de alguma forma pela Primeira República.

Lima Barreto porque sim. Sempre.


CRISTINA NUNES é jornalista, moderadora do JornalistasRJ. Escreve para os portais Vida e Ação, Cultura em Movimento e toca o blog/fanpage Literatura É Bom Pra Vista. Doutora em Ciências Sociais pela UERJ, tem pós-doutorado em Comunicação e Cultura também pela UERJ onde é pesquisadora associada do Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (LACON) do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação Social. Pesquisadora associada da Universidade Estadual da Zona Oeste.