Por João Marcos Buch –

“O mergulho nas trevas do lamento e da impotência foi tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâneos, ficaram na margem ou escolheram as viagens permanentes. Mas muitos cansaram de se lamentar, talvez com medo de se tornarem tristes heróis de uma ‘guerra acabada’. Estão voltando a querer, isto é, estão recuperando a vontade para voltar a fazer — apesar de tudo” (Vladimir Herzog, 1937 – 1975).

Com tantas feridas abertas neste Brasil dos anos 20, do século 21, Herzog apareceu em meus pensamentos. Entretanto, não porque eu tenha mergulhado nas trevas do lamento e da impotência ou por medo de me tornar herói de uma guerra acabada, meu desconforto não se compara à dor de alguém que, em outubro de 1975, apresentou-se no DOI-Codi, após ter sido procurado na emissora da TV Cultura, e horas mais tarde estava morto, num suposto suicídio nunca aceito pela sociedade (in: Meu Querido Vlado, de Paulo Markun — editora Objetiva).

Sou juiz de direito, estou do lado de cá, pertenço ao Poder… A referência se deve ao fato de que, nas experiências sobre a dor do cárcere, sobre a ilegalidade do confinamento de seres humanos em ambientes superlotados e insalubres, sobre o mergulho nas trevas do lamento e da impotência de homens e mulheres que recebem a liberdade, mas que continuam presos ao estigma do cárcere, eu sempre volto a querer, sempre recupero minha vontade de voltar a fazer — apesar de tudo.

E voltar a querer — apesar de tudo, para mim, é menos uma vontade de projeto democrático de nação e mais um desejo de realização de justiça, uma justiça solidária. Por outro lado, não devo isso à ninguém mais senão àqueles que se apresentam perante minha pessoa e me fazem lembrar, sempre, que tenho obrigações, compromissos e responsabilidades como juiz e como ser humano.

Desta feita, foi um apenado, cujos olhos da necessidade pousaram sobre meus ombros e me acompanharam até meu decidir, que me fez voltar a fazer, apesar de tudo. Seu nome está no título desta crônica: Rogério da Cruz.

— Boa tarde! Você é Rogério da Cruz? Sou o juiz do seu processo.

— Sim, sou eu. Boa tarde, seu Buch!

— Bem, a questão é a seguinte: você cumpre uma pena de seis anos de reclusão, já cumpriu mais da metade. No ano passado, você foi para a domiciliar com tornozeleira, mas o problema é que aconteceram muitos apontamentos de violação de área e término de bateria. Esta audiência é para tratar disso, para saber o que houve e o que não houve. Passarei a palavra ao Ministério Público e depois à Defensoria Pública, pode ficar bem à vontade para responder.

— Sim, senhor.

Rogério da Cruz tinha o cabelo raspado, deixando exposto um rosto de pele manchada e ressecada. Estava um pouco acima do peso. Negro, no quesito idade furava a regra, tinha mais de 30 anos. A população carcerária, em geral, é formada por detentos de 18 a 28 anos — o motivo não é, em princípio, de que após essa idade a vida do crime é abandonada, mas sim, de não sobrevivência, a juventude não resiste à violência necrocapitalista.

Reincidente em furtos, aquele apenado cumpria sua terceira pena, agora por tráfico de drogas. Um ano antes, com o tempo necessário para progredir de regime e, tendo bom comportamento, foi do fechado para o semiaberto, logo conseguindo a domiciliar com monitoramento eletrônico.

Entretanto, meses depois, por descumprir as condições impostas para o monitoramento, teve o direito liminarmente cassado, voltando para a prisão. Sua oitava fora marcada. Após a audiência seria deliberado sobre regressão de regime ou, justificada a falta, manutenção do regime semiaberto e, por consequência, retorno à prisão domiciliar.

Na ocasião, um Rogério da Cruz emocionado relatou que, ao sair da prisão, encontrou a mulher doente, com seus três filhos pequenos em situação muito grave. No início, com bicos aqui e acolá conseguiu colocar comida em casa, porém, as contas venciam sem parar. Desta forma, nas madrugadas passou a catar latinhas. Como ficava muito tempo nas ruas, não conseguia recarregar a bateria da tornozeleira.

— Doutor, eu precisava manter a minha mulher e meus filhos, eles não têm mais ninguém, sou o responsável por eles! Sei que fiz errado, mas eles precisam de mim.

Com isso, as forças exauridas na tentativa de me convencer da verdade de suas palavras, o apenado encerrou o depoimento. Ninguém mais nada perguntou.

Expliquei ao apenado que a partir dali tanto o Ministério Público como a Defesa teriam uns dias para se manifestar. Depois eu decidiria sobre a pena e seus cálculos.

Fluídos os prazos, com as alegações finais apresentadas, os autos, com todos os elementos, chegaram para decisão.

Sempre me pergunto como a Justiça pode ser tão cega e ignorar quem vive fora do seu palácio. Talvez porque o estado seja composto por um extrato da sociedade em que não há vulnerabilizados ou periféricos, ou negros. Mas isso a nada justifica. Sou branco, sempre tive privilégios e ainda assim em algum momento da minha trajetória tomei consciência de tudo, em um aprendizado diário.

Crédito: Wikimedia Commons

Estava tão claro que aquele apenado, diante da sua precária condição socioeconômica, vinha sendo punido muito além do que a sentença condenatória estipulara. Não era razoável aplicar uma falta grave para alguém que, quando em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, precisou catar latinhas durante as madrugadas, para manter a família e pagar as contas.

Se o objetivo da execução penal é efetivar as disposições de sentença criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (art.1° d LEP), em um país onde a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, que tem entre os objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, com a prevalência dos direitos humanos (art.1.º, III; art.3.º, III e art.4.º, II da Constituição Federal), no caso que eu tinha em mãos cumpria reconhecer que falta grave o apenado não praticara, jamais!

Rogério da Cruz teria a prisão domiciliar com monitoramento eletrônico restabelecida. Além disso, haveria maior elasticidade para ficar fora de casa. Apenas precisaria comunicar logo à Central, caso a bateria faltasse. O tempo para a progressão ao aberto não tardaria e, então, o equipamento seria retirado e as condições da prisão domiciliar ficariam mais brandas, com a vida, quem sabe, tornando a lhe sorrir.

O fato é que eu e Rogério da Cruz voltamos a querer, recuperando a vontade de fazer — apesar de tudo.

 

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

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