Redação

Para se associar à BSGR, empresa do controverso empresário israelense Benjamin Steinmetz, o Beny, e adquirir os direitos de exploração de parte da mina de Simandou, na Guiné, uma das maiores reservas mundiais de minério de ferro, a companhia brasileira Vale deveria ter feito “uma investigação corporativa exaustiva e sem vícios”.

A mineradora garante que fez. Em comunicado de 2014 ao mercado, quando o governo do país africano cassou a permissão de exploração daquela mina, a empresa afirmou que fechou o bilionário acordo “somente após uma extensiva due diligence realizada por profissionais especializados e com base em declarações e garantias de que a BSGR teria adquirido todos os direitos minerários de forma legal e sem qualquer promessa ou pagamento indevidos ou corruptos”. E completou: “A Vale veementemente condena o uso de práticas de corrupção, reitera o seu compromisso com a governança corporativa transparente e está considerando seus direitos legais e opções”.

Não é essa, contudo, a conclusão a que chegou o mais badalado parecerista do mercado da advocacia nos dias correntes, o ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, Sergio Moro. No lugar de uma investigação séria, o real propósito da empresa ao fazer a due diligence antes de fechar o acordo era o de obter “uma escusa para prosseguir no negócio a despeito das suspeitas que sobre ele pairavam”.

Ao agir dessa forma e entrar em uma sociedade para extrair minério no país africano sem comunicar à bolsa de valores e aos seus investidores todos os riscos de que tinham prévia ciência, os dirigentes da mineradora brasileira podem responder por crime de fraude na administração de sociedade por ações.

Essa é a opinião que se extrai do parecer de 54 páginas escrito pelo advogado Sergio Moro, ao qual a ConJur teve acesso e publica na íntegra pela primeira vez desde a notícia de que o ex-líder da “lava jato” em Curitiba havia sido contratado pelo empresário para opinar sobre a disputa bilionária que ele trava com a empresa brasileira em Nova York, Londres e, agora, no Rio de Janeiro.

O litígio é, no mínimo, curioso. A Vale acusa de corrupto seu ex-sócio no projeto bilionário da companhia na Guiné e diz que jamais desconfiou que ele fosse corrupto. Se soubesse, não teria se associado à sua empresa, a BSGR. Por seu lado, Beny afirma que nunca praticou atos de corrupção na obtenção dos direitos de exploração da mina de minério de ferro no país africano. Mas alega que, quando a Vale se associou a ele, dirigentes da empresa tinham sérias desconfianças de que a BSGR só detinha os direitos graças à prática de corrupção. E topou ser sua sócia mesmo assim, sem comunicar suas suspeitas ao mercado. Por isso, seus dirigentes têm de ser enquadrados.

A disputa tem lances cinematográficos, como a investigação privada contratada por Beny e feita pela empresa Black Cube, na qual dois executivos da companhia brasileira, sem saber que eram gravados, dizem que a Vale tinha noção dos riscos e desconfiava de corrupção, mas decidiu fechar os olhos por conta do interesse estratégico na exploração da mina de Simandou. Os executivos também se referem à due diligence como uma “apólice de seguro” para ser usada em caso de o negócio dar errado — justamente o ponto destacado por Moro em seu parecer.

Os lances, seus principais personagens e a história da sociedade estão descritos em uma extensa e prazerosa reportagem da jornalista Consuelo Dieguez, publicada na edição deste mês de dezembro na revista piauí, sob o título “O Bilionário do Barulho”.

Transparência em jogo
O parecer de Sergio Moro poderá ser usado como reforço das teses apresentadas em dois pedidos de investigação feitos em outubro por Beny ao Ministério Público do Rio de Janeiro e ao Ministério Público Federal no Rio. Ao parecer do ex-juiz se soma outro, assinado pelo constitucionalista Pedro Serrano e dois advogados de seu escritório.

Entre várias conclusões, Serrano afirma que a falta do dever de transparência dos dirigentes da Vale — demonstrada pelos documentos anexados às duas notícias-crime que correm em sigilo no Rio de Janeiro — pode ensejar processo administrativo de responsabilização perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O parecer, na íntegra, pode ser acessado aqui.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a Vale enviou à reportagem o seguinte posicionamento: “Ambos os pareceres se baseiam em alegações e declarações trazidas pela Black Cube. Todas as declarações já foram objeto de desmentido público pelo próprio declarante, que foi vítima de uma armação clandestina. Portanto, são opiniões que se assentam sobre fatos e premissas improcedentes”.

A base da análise dos dois pareceres são os documentos apresentados pelo empresário israelense ao Ministério Público estadual e federal do Rio. Por isso, em vários trechos os pareceristas reforçam o fato de que opinam sobre crimes em tese. Para que os fatos sejam realmente enquadrados nos crimes e nas infrações descritos nos pareceres, é necessário que as investigações em curso no Rio de Janeiro os comprovem.

“Caso a investigação confirme os fatos apresentados pelo Consulente e não sejam apresentadas escusas idôneas pelos investigados, os executivos da Vale S/A teriam, em tese, prestado afirmações falsas e ocultado fraudulentamente do mercado e de seus acionistas as reais condições do negócio celebrado com a BSGR acerca dos direitos de exploração sobre Simandou e sobre os motivos da rescisão posterior”, escreve Moro.

No parecer, o ex-juiz federal analisa o dever imposto aos administradores das companhias de capital aberto pelo parágrafo 4º do artigo 157 da Lei 6.406/1976, a Lei das Sociedades Anônimas. “Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembleia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia”, diz a regra legal.

Moro ainda descreve algumas trocas de mensagens entre executivos da Vale que datam de 2007, 2008 e 2009, em que constam referências sobre o interesse da empresa brasileira pela exploração da mina e a percepção do uso de métodos heterodoxos pela BSGR, a empresa de Beny à qual a Vale viria se associar em 2010. De acordo com o parecer, diretores disseram que a BSGR agia de forma ofensiva, mas antiética, na tentativa de obter os direitos de exploração da mina em Simandou.

De acordo com ele, “é inequívoco que a suspeita de que a concessão teria sido obtida por corrupção e suborno e os riscos decorrentes de revogação constituíam fatos relevantes atinentes à celebração do contrato de joint venture com a BSGR para exploração dos direitos sobre Simandou e que, portanto, ela, a suspeita, e os riscos deveriam ter sido comunicados ao mercado e aos acionistas, diminuindo a expectativas de ganho em relação ao negócio e alertando aos investidores os riscos potenciais”.

Já em seu parecer, os advogados Pedro Serrano, Anderson Bonfim e Fernando Hideo Lacerda afirmam que “caso se confirmem os fatos narrados pelo Consulente, a omissão, pela Vale S.A., de relevantes eventos insertos no contexto dos contratos de joint venture entre ela entabulado e a BSGR, além dos seus desdobramentos nos últimos anos, acarretaram na apresentação de um retrato que deixou de verdadeiro, preciso e completo quanto à situação econômico-financeira da companhia, bem como dos riscos inerentes às suas atividades e, consequentemente, dos valores mobiliários emitidos pela companhia”.

Nas duas notícias-crime apresentadas por Benjamin Steinmetz foram anexadas trocas de mensagens entre executivos da Vale que demonstrariam, na visão do empresário e dos pareceristas, que executivos da mineradora brasileira tinham ciência de que o negócio envolvia riscos e desconfiavam de métodos irregulares para a obtenção da concessão para a exploração da mina.

O empresário afirma, nos pedidos de investigação, que o atual presidente da mineradora brasileira, Eduardo Bartolomeo, tinha conhecimento de que informações relevantes foram omitidas dos comunicados da Vale ao mercado, de forma deliberada. Entre os documentos apresentados estão e-mails em que Bartolomeo é um dos destinatários. Antes de assumir a presidência da Vale, em março de 2019, o executivo foi diretor de logística e de operações de minério de ferro. Nesse posto, foi um dos dirigentes escalados para receber a comitiva do governo da Guiné que visitou a sede da Vale em maio de 2010, um mês após a criação da joint venture com a BSGR de Beny.

Divórcio litigioso
A Vale e a BSGR fecharam acordo e criaram a joint venture para explorar a mina de Simandou em 30 de abril de 2010. Um negócio de US$ 2,5 bilhões. O contrato foi fechado com o pagamento de US$ 500 milhões pela Vale e a promessa de desembolso dos outros US$ 2 bilhões durante o curso do projeto.

No anúncio da boa nova que fez ao mercado, a mineradora brasileira afirmou: “O primeiro investimento da Vale na província de minério de ferro do oeste africano será alavancado pela longa experiência em desenvolver com sucesso projetos de mineração de grande escala em ambientes tropicais. Esta iniciativa fortalecerá a liderança global da Vale na indústria de minério de ferro como o principal fornecedor de produtos de alta qualidade e deverá criar valor significativo para seus acionistas no longo prazo. Desta forma, a aquisição de Simandou amplia a capacidade da Vale em atender com excelência a seus clientes em termos de logística e qualidade de produto”.

A lua de mel, contudo, foi bastante curta. Em fevereiro de 2011, depois de uma série de turbulências políticas, Alpha Condé foi eleito presidente da Guiné. Em uma das primeiras medidas de seu governo na área de mineração, exigiu que o minério de ferro a ser extraído da mina de Simandou teria de ser escoado pela Guiné. Até então, o plano da companhia era escoar o minério pela Libéria, país vizinho que já tinha parte da infraestrutura de logística bem mais avançada, inclusive com porto de águas profundas, adequado para o tipo de embarcação necessário para o escoamento de ferro.

A mudança das regras fazia o custo do investimento ser substancialmente elevado. Tanto que muitos consideravam que a exigência inviabilizaria o negócio. Além disso, poucos meses depois, uma nova lei veio regular a mineração no país africano e impôs uma taxa de 15% sobre todos os negócios de mineração do país. Em seguida, houve alegações de que a concessão havia sido obtida pela BSGR por meio de fraude.

Em 2014, três anos depois de fechado o negócio, o governo cassou a concessão para exploração da mina da VGB, a empresa formada entre a Vale e a BSGR. A companhia brasileira, então, rompeu com seu sócio israelense e acionou o Tribunal Arbitral Internacional, com sede em Londres, exigindo ser indenizada e ressarcida, com o argumento de que não tinha conhecimento de que os direitos de exploração da mina tinham sido obtidos por meio de uma série de irregularidades, inclusive com a prática de corrupção.

Em abril do ano passado, o tribunal arbitral deu ganho de causa à Vale e determinou que a BSGR pague a quantia de US$ 1,2 bilhão à empresa brasileira. A investigação privada e os pareceres fazem parte do pacote de novos argumentos com os quais o israelense espera não só reabrir a discussão no tribunal arbitral, algo que é bastante raro, como ser ele ressarcido pela mineradora brasileira.

Clique aqui para ler o parecer de Sergio Moro
Clique aqui para ler o parecer de Pedro Serrano


Fonte: ConJur