Por José Carlos de Assis –
A chamada civilização ocidental é um desastre completo do ponto de vista humanitário. Na África e na Ásia, seus exércitos de colonizadores, principalmente europeus, levaram morte e terror para conquistarem os povos locais até meados do século XX, fazendo da hegemonia militar um instrumento de hegemonia política. Posteriormente, quando os colonizados se levantaram em sangrentas lutas pela liberdade, deixou como legado para eles uma completa desorganização social que resultou, modernamente, em mortíferas guerras civis em muitos países.
A conta dessa desorganização está sendo cobrada do próprio povo europeu. Imensas correntes de emigrantes, aos quais a colonização não possibilitou uma alternativa de desenvolvimento doméstico, estão abandonando seus países de origem, expulsos pela instabilidade política por guerras civis e pela fome. As consequências do colonialismo europeu têm sido, assim, igualmente perversas para os dois lados. Países como Itália, França e Inglaterra, entre outros, já não estão suportando o peso sobre sua infraestrutura social e econômica de demandas trazidas pelos antigos colonizados.
Entretanto, não há nada pior, para a humanidade, do que o legado da hegemonia norte-americana, imposta militar, econômica e financeiramente, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Em nome da defesa da “democracia” e do combate ao comunismo, Washington adotou uma política intervencionista que, com base em sua supremacia militar no curto prazo, deixou as piores consequências para o mundo, no tempo atual. Vítimas desse processo não são mais os colonizados pelo imperialismo norte-americano, mas o mundo inteiro.
De fato, por efeito da intervenção dos Estados Unidos na Coreia, na China e em todo o Oriente – nesse caso, agora, através da injustificada tentativa da OTAN de expansão sobre a fronteira russa -, o mundo ficou sob o tríplice risco de guerras nucleares catastróficas. A Coreia do Norte tornou-se, surpreendentemente, uma potência atômica. Ela já desafia os Estados Unidos e pode arrastar o mundo para a liquidação total. A China, também uma potência nuclear, a qualquer momento pode exigir a unificação com Taiwan, a despeito da proteção militar que os EUA vem dando à ilha desde 1999.
No caso da OTAN, a decisão norte-americana de expansão para o Leste, sob Bush pai, ultrapassou qualquer limite de prudência. De acordo com os acordos verbais feitos com Mikhail Gorbachev, não havia qualquer justificativa para a manutenção dessa organização militar depois que a União Soviética foi extinta em 1999. A Federação russa tornou-se progressivamente um país capitalista e curvou-se a modelos políticos ocidentais, sem qualquer indicação de que retomaria um curso intervencionista contra vizinhos.
Foi a OTAN, ao contrário, seguindo instruções norte-americanas, que tomou um rumo intervencionista, arrogante e agressivo, contra a Rússia. Aos poucos, sob argumentos de que era preciso se precaver contra intenções intervencionistas falsas atribuídas ao antigo inimigo geopolítico da Guerra Fria, incorporou nas suas fileiras quase uma dezena de países que haviam participado, antes, da União Soviética. Não havia, como disse, nenhuma justificativa militar para isso. A Rússia de Vladimir Putin se havia disposto inclusive a entrar para a OTAN, mas foi repelida.
A estratégia norte-americana, ao rejeitar iniciativas confiáveis de aproximação de Moscou com o Ocidente, como essa, simplesmente expôs a determinação de preservação da hegemonia dos EUA em todo o mundo. Entretanto, num período curto de tempo, grandes mudanças econômicas e políticas ocorridas no planeta tornaram obsoletas as pretensões hegemônicas de Washington. A China se tornou a segunda maior economia mundial, a Rússia manteve sua paridade estratégica com os EUA e a Coreia do Norte se tornou uma potência nuclear capaz de desafiar o Império – com um elevado nível de irresponsabilidade de seu governante.
Isso acentuou o risco para a toda a humanidade de guerras nucleares catastróficas, agora com o virtual renascimento da Guerra Fria, sobretudo tendo em vista a reação russa às provocações ocidentais na Ucrânia. Isso porque, antes da guerra, a Rússia avisou várias vezes, apoiada por advertências conciliadoras, porém claras, de seu aliado chinês, de que o Ocidente deveria levar a sério as alegações sobre a segurança em suas fronteiras.
Ao contrário do que os chineses pediam, ela não foi levada a sério.
É nesse sentido que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tem plena razão ao atribuir aos dirigentes da Ucrânia parte das responsabilidades pela guerra. A imprensa ocidental está vendo a guerra como um fato isolado, sem causas remotas. O fato é que se Zelensky, um palhaço de televisão sem experiência política, não tivesse insistido tanto em entrar para a OTAN, com uma demonstração infantil de absurda irresponsabilidade política, a Rússia não teria razão para realizar a “operação especial” contra a Ucrânia.
Obviamente, desde o início, os Estados Unidos exerceram um papel preponderante em todo esse processo. Eles estiveram por trás do estímulo à Ucrânia para buscar a adesão à OTAN, e tiveram, junto com nações europeias, oportunidades de evitar a guerra vetando essa adesão. Não vetaram. Ao contrário, alegaram que a Ucrânia, como nação “soberana”, tinha o direito de pedir a adesão. Como se veria à frente, esse Estado “soberano” só não foi liquidado pela Rússia até agora porque faz uma “guerra de procuração” contra a Rússia, com armas estrangeiras.
O que a imprensa ocidental não se pergunta é a razão pela qual a OTAN buscou a expansão para o Leste, mediante a incorporação da Ucrânia a seu bloco. A resposta se encontra no novo estilo de recuperação de hegemonia que os Estados Unidos estão impondo ao mundo, na era nuclear. Os norte-americanos querem usar a longa linha de fronteiras entre a Ucrânia e a Rússia como uma rota de penetração para as guerras “híbridas” do tipo das que provocaram na chamada Primavera Árabe, desestabilizando países como Líbia, Egito, Síria e outros, de linha política simpática aos russos.
De fato, sem possibilidade real de um confronto direto com seu principal adversário estratégico, Washington procura o caminho alternativo de destruí-lo por dentro. Nesse jogo todo tipo de intrigas políticas são usadas, nas chamadas guerras “híbridas”, com o objetivo de levantar as massas contra governos acusados de autoritários – ou mesmo democráticos, como aconteceu com o Brasil em 2014/15. Mais próxima da Rússia, através da Ucrânia, a OTAN teria melhores condições logísticas para introduzir dentro dela seus espiões e instigadores de violência social e civil.
É preciso recordar que uma das maiores ONGs estrangeiras, a Open Society, presente na Ucrânia desde 1990 com o objetivo de “promover a democracia”, esteve claramente envolvida na incitação de guerras “híbridas” para derrubar, em 2014, um presidente legítimo, Viktor Yanukovych. A razão para a derrubada foi uma proposta da Rússia à Ucrânia para um financiamento de US$ 15 bilhões para compra de gás. Isso aproximaria os dois países num nível não aceito pelos ocidentais. Explodiu então uma “revolução”, em nome da “democracia”, promovida pelos ocidentais, sendo que a resposta de Putin à derrubada de Yanukovych foi a anexação da Crimeia.
Vieram logo em seguida os acordos de Minsk para suspender a guerra. A parte ucraniana, apoiada por milícias nazistas, rejeitou na prática acordos de proteção das populações russófilas do leste do país. Não houve estabilidade. Reunindo suas preocupações de segurança com a intenção de proteger essas populações, Putin decidiu incorporar também seus territórios, já no curso da guerra, legitimando essa decisão com plebiscitos sob seu controle.
Agora estamos no terreno dos fatos consumados. Não há saída a não ser negociações, que serão extremante difíceis. Para isso, os dois lados têm que manifestar interesse na paz, conforme também insiste o presidente brasileiro. Mas parece que, por enquanto, isso não existe.
Realisticamente, como por trás do conflito na Ucrânia o que determina a condução e o curso da guerra são os próprios Estados Unidos, usando Zelensky como um simples fantoche, o mundo não terá verdadeira paz se Washington não recuar de sua pretensão de retomar a posição hegemônica no planeta. Como o grande hegemon anticomunista, o país envolveu-se, ao longo da história, em iniciativas bélicas na Coreia, na proteção a Taiwan e Israel, e na fracassada intervenção no Afeganistão, entre outras.
Atualmente, todos esses são pontos nevrálgicos que poderão levar a uma guerra catastrófica. E tudo isso, como um legado da hegemonia política que se revelou totalmente fracassada no contexto da civilização ocidental.
***
AGENDA
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JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, doutor em Engenharia da Produção, autor de mais de 25 livros de Economia Política e introdutor do jornalismo econômico investigativo no Brasil com denúncias de escândalos sob o regime militar que contribuíram de forma decisiva para o desgaste da ditadura nos anos 80. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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