Por Marcelo Mário de Melo –
Maria, a mãe de Cristo, geralmente é representada na figura da “mãe eleita”, a virgem que concebeu “sem pecado” o filho de Deus. Ou na condição de “mãe aflita”, girando em torno do filho perseguido. Mas na verdade, o seu papel na história do cristianismo não se resumiu a isto. Quem alertava para este aspecto era o padre Romano Zufferey, suíço e socialista, que chegou ao Brasil em 1963, como assistente da Ação Católica Operária do Nordeste, atravessou o período ditatorial e morreu em 1986, sempre envolvido com as lutas dos trabalhadores.
Romano chamava a atenção para o Canto de Maria, um canto de alegria, que ela proclamou quando soube que estava grávida do filho de Deus, segundo a crença de uma parte dos cristãos. Sim, porque para os protestantes, Maria foi mãe naturalmente, tendo vários filhos de São José, entre eles, Jesus.
O canto apresenta uma parte mística, religiosa, (“o senhor fez em mim maravilhas, santo é seu nome, etc.”), e outra de caráter temporal: “ele faz proezas com seu braço: dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos; eleva os humildes; aos famintos enche de bens; e despede os ricos de mãos vazias” (Luc, I, 51 a 53) Aí estão indicadas preocupações sociais e políticas de Maria, anteriores à trajetória e às idéias do filho, que ainda se encontrava no seu ventre.
As aflições de mãe só viriam a ocorrer 33 anos depois. Maria, portanto, não era uma mulherzinha sem nada na cabeça, mobilizada, apenas, em função do filho. Ou uma dependente das suas idéias. É mais provável que tenha sido ela a influenciá-lo, e não o contrário.
A genealogia revela que a mãe de Cristo era parente de Isabel, a mãe de João Batista, profeta que denunciou os escândalos de Herodes, o rei da Judéia, sendo preso e decapitado a seu mando. Foi João Batista quem batizou Cristo no Rio Jordão. Havia, portanto, idéias religiosas, políticas e sociais comuns, nessa família. Mesmo que existissem diferenças na pregação dos dois profetas aparentados, o fato é que ambos desagradaram aos poderosos da sua época, sendo por eles perseguidos, torturados e mortos. Reforçando a ideia de um envolvimento familiar, observe-se que Sant’Ana, a mãe de Maria, também participava da comunidade dos cristãos primitivos.
Depois da crucificação de Cristo, Maria continuou ligada aos apóstolos, ajudando a divulgar uma religião que atuava na clandestinidade. Era o chamado cristianismo “das catacumbas”. São Pedro, que chefiou a Igreja depois de Cristo, também foi morto na cruz. São Paulo, antigo oficial romano perseguidor de cristãos, que havia se convertido, dedicou-se a expandir o cristianismo entre os gentios e em outras terras, e também foi martirizado, a mando de Nero, imperador romano.
Os cristãos das catacumbas eram perseguidos e atirados aos leões. Até que, no século III, o Rei Constantino, imperador romano, se converteu e fez do cristianismo uma religião oficial. A partir daí ele se envolveu com as pompas, a riqueza e a realeza, corporificadas no poder dos papas. Vieram a intolerância, as perseguições a outras religiões, as Cruzadas e as fogueiras da Inquisição.
No Concílio Vaticano II, encontro de bispos de todo o mundo, realizado em 1965, a Igreja Católica indicou caminhos de atualização e sintonia com os anseios de justiça e liberdade que emanavam do mundo. Propôs a ação comum com outras religiões e se abriu aos “homens de boa vontade”, mesmo que não fossem religiosos. Essas diretrizes não conseguiram predominar no corpo da Igreja, mas lançaram sementes e geraram frutos. Depois veio a teologia da libertação, ativada por religiosos empenhados numa volta do cristianismo às suas fontes, ligada aos pobres e oprimidos e aliando a inspiração religiosa ao compromisso com a justiça e a vida em abundância aqui na terra.
Mas isto já é outra história. E o objetivo deste artigo é somente estimular uma releitura de Maria, rompendo-se com o olhar preconceituoso, conservador e machista que a envolve. Porque Maria, a mãe de Cristo, não era uma cabeça oca, uma mariazinha qualquer. Ao contrário. Conforme diz a moçada de hoje, ela era irada!
Publicado originalmente em 25/07/2016 – Tribuna da Imprensa Sindical
MARCELO MÁRIO DE MELO – Poeta, escritor, jornalista, intelectual pernambucano, ativista político. Nasceu em Caruaru, foi para o Recife com nove anos de idade. Integrou-se ao PCB aos 17 anos, foi fundador do PCBR em 1968, atuou na clandestinidade, teve a prisão preventiva decretada em 1970, foi preso político em Pernambuco de março de 1971 a abril de 1979. Filiou-se ao PT em 1980, desfiliou-se em 1990 e reintegrou-se em 1994, sem ter se ligado a nenhum outro partido no intervalo, “o que equivale a um segundo casamento com a mesma mulher”, como ele mesmo costuma dizer. Escreve principalmente poemas, histórias infantis, mini-contos e textos de humor.
MAZOLA
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