Por Lincoln Penna

Um regime nominalmente liberal pode ser realmente opressivo. Um regime que assume sua violência poderia conter um humanismo verdadeiro. (Maurice Merleau-Ponty)

As revoluções na história contemporânea produziram cenas de violência e de terror próprias dos processos sociais que as gestaram. Para que elas fossem bem sucedidas em seus objetivos era necessário pôr em prática ações determinadas a extirpar hábitos e atitudes inerentes às ordens removidas pelos revolucionários, de modo a implantar as novas relações sociais de produção.

Como parteiras do processo histórico, em muitas oportunidades, o emprego da violência como método com vistas a modificar o poder que vigorava e, com isso, fazer funcionar as novas diretrizes do poder revolucionário, tais medidas tornavam-se necessárias. Em nenhum dos casos em que esses partos foram realizados houve a hipótese de uma transição não-violenta, dado que isto não poderia se aplicar às revoluções que justificam essa denominação.

A violência revolucionária torna-se necessária tendo em vista a necessidade de adotar ações que façam avançar a humanidade.

A rigor há dois tipos de violência na história, a que oprime e a que liberta. Nesta trata-se de reaver ou construir o humanismo verdadeiro de que fala acima Merleau-Ponty. Humanista, o autor da epígrafe discorre sobre os processos que deram lugar à ordem socialista soviética na Rússia e nos demais estados formadores da então União Soviética, cujas lideranças foram e têm sido sempre acusadas de agirem com extrema violência, quando não com atos que configurariam o terror de estado. Merleau-Ponty, no entanto, chama a atenção da seguinte circunstância, a ser estendida, no caso, a todas as experiências revolucionárias do século XX. Diz ele em seu livro “Humanismo e Terror”:

“É do Ocidente conservador que o comunismo recebeu a noção de história e aprendeu a relativizar o julgamento moral. Ele reteve a lição e procurou (…) no meio histórico dado, as forças que tinham possibilidade de realizar ainda assim a humanidade”.

Em outras palavras, qualquer que seja a revolução não se removem estruturas e costumes tão logo se implante um poder revolucionário. É preciso que a cultura política subjacente seja paulatina e pacientemente eliminada com sabedoria e determinação. E dentre esses elementos das culturas pré-existentes a aversão aos seus oponentes acaba fomentando uma violência permanente de cunho persecutório, preconceituoso e, por isso mesmo, opressor.

Ao percorrer o panorama do Ocidente desde que passou há séculos a exercer a hegemonia no mundo, a partir de uma suporta defesa da Civilização, não é difícil constatar que a violência não apenas se tornou crônica nas relações internacionais, como tem se aprofundada. Além do mais, ela tem sido impelida pela lógica que comanda os interesses desse Ocidente. Assim, toda e qualquer iniciativa para instaurar uma paz duradoura torna-se infrutífera porque não consulta a vontade das esferas de poder dominantes.

Essa constatação se estende, logicamente, às diversas sociedades submetidas a essa lógica comandada pelo capitalismo, razão principal senão absoluta dos males que afetam a humanidade. Esses males podem ser reunidos no grande e variado bolsão do termo violência, uma vez que são várias as suas modalidades, desde a exclusão social de inúmeros contingentes da população até a criminalidade que infesta os espaços tanto urbanos quanto rurais, através da presença de poderes paralelos, que se impõem nas comunidades desassistidas.

Ora, toda e qualquer movimento social que se proponha à quebrar essa situação, sobretudo no campo, tem tido o rechaço da mídia vocacionada para dar apoio aos representantes do poder político onde tais confrontos ocorrem.

Ninguém deve ser favorável à violência. Esta seria a consigna correta de uma sociedade justa. Quando, no entanto, as sociedades desiguais atingem níveis de miserabilidade em razão de interesses privados que atropelam o estado e os governantes que desejam pelo menos reduzir os impactos das injustiças sociais que se acumulam faz tempo, esses governantes são objeto de críticas amargas.

E por vezes até de deboche, como se existisse um único modelo de governança, principalmente no trato da distribuição da riqueza nacional que, no entanto, deve priorizar os mais necessitados. Isto se chama democracia, que dispensa a designação de social, porque democracia deve compreender essa dimensão ou não é democrática em sua essência.

No Brasil de agora nos deparamos com essa situação pautada no debate político no que tange aos juros e ao uso dos ativos financeiros das grandes empresas estatais ou paraestatais. As decisões majestáticas de organismos como os do Banco Central tornam os interesses do povo subalternos aos do capital, não obstante os argumentos contrários da narrativa de seus dirigentes e dos ideólogos sempre reativos às críticas que lhes são dirigidas.

Pouco tem sido observado o que reza o artigo primeiro da Constituição que garante aos representantes do povo no legislativo, ou diretamente, isto é, pelo próprio povo, a possibilidade deste se fazer ouvir. É nesse contexto que a fala do presidente Lula merece ser considerada, quando verbera contra a alta taxa de juros como uma fórmula de contenção da espiral inflacionária. Seus argumentos devem ser ouvidos por se tratar de alguém que foi sufragado pelo voto popular e é, por mérito eleitoral, o responsável primeiro pelos rumos do país.

Essa é uma das muitas violências que são ignoradas pelas grandes massas da população, que não têm outra alternativa senão atribuir ao governo o aumento crescente do custo de vida. Desinformada pelos mecanismos do próprio governo, que se debate sobre o quê fazer entre os seus membros, e a mídia a enfatizar essas divergências no âmbito governamental como se estas não fizessem parte do jogo democrático, o fato é que acaba se impondo a versão dos financistas liberais do mercado.

São essas pessoas desavisadas que se tornam presas fáceis das tendências fascistóides, prontas para impedir as mudanças que venham a propiciar avanços efetivamente democráticos.

A única violência veiculada pela mídia não toca no problema original. Ao contrário, acabam incriminando essas comunidades como aliadas da criminalidade, quando, na verdade, são usadas pelos criminosos de ambos dos lados, os do crime organizado e o das forças policiais nas operações violentas que tomamos conhecimento dia após dia aterrorizando o povo já tão sacrificado.

No instante em que esse povo tomar verdadeiramente consciência de que a primeira violência, aquela da espiral notabilizada pelas falas do padre Helder Câmara, a desencadear as demais for finalmente erradicada aí sim teremos condições de superar esse quadro de mortes anunciadas cotidianamente. Cabe sublinhar que a primeira violência de que falava o padre Helder é a da injustiça social. As outras que se seguem derivam dessa.

E esta violência parteira das demais tem nome e sobrenome, pois trata-se nada mais nada menos nos tempos modernos a do que o regime autodenominado de liberal (?), que a rigor é mais conhecido como sistema capitalista em sua essência, que historicamente fez expandir uma das mais remotas práticas humanas surgidas por ocasião da formação das sociedades de classes, aquela que envolvia conquista de terras mais férteis.

Com o passar do tempo a exploração incrementou-se e com isso passou o tempo de submeter todos os povos, já na etapa de dominação do grande capital na busca frenética da mais-valia e da acumulação desenfreada, que onera o povo e lhe rouba a vida.

Essa lógica capitalista tem se reproduzido largamente nos espaços públicos de metrópoles em muitas regiões do mundo periférico desse sistema de poder movido pelo capital, inclusive lançando mão dos mesmos recursos de dominação e pressão, cuja mais agressiva de suas manifestações, o imperialismo, assumiu novas configurações que precisam ser examinadas.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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