Alberto Zacharias Toron e Renato Marques Martins –
Em 1966, no caso Miranda versus Arizona, a Suprema Corte Americana absolveu o acusado que havia sido condenado com base em confissão obtida sem que tivesse sido informado de seu direito a ser assistido por um advogado e permanecer em silêncio.
A partir de então, consolidou-se nos EUA o dever de os agentes policiais, no ato da prisão, comunicar ao acusado sobre o seu direito de não responder e de ser assistido por um defensor, bem como o de que tudo que disser poderá ser usado contra si. Fernando Capez lembra que isto pode ser observado “nas produções de Hollywood, onde o policial, após deter o bandido (bad guy), profere a célebre frase: ‘Você tem o direito de permanecer calado e tudo o que disser poderá ser utilizado contra você no tribunal’”[1]. Nos EUA e no resto do mundo esses direitos ficaram conhecidos como Miranda Rights ou, entre nós, como Aviso de Miranda.
No Brasil, apesar de importantes ensinamentos doutrinários como o de Capez, acima citado, e o trabalho seminal de Theodomiro Dias Neto[2] e o de Maria Thereza de Assis Moura juntamente com Maurício Zanóide de Morais[3], a jurisprudência vem, embora com oscilações, reconhecendo inexistir o dever de o policial, no momento do flagrante, ou da realização da operação, ou mesmo na sequência desta, quando se leva alguém para a Delegacia, de se fazer tal advertência ao investigado.
Valha-nos, no ponto, a arguta observação do Min. Edson Fachin que, ao manifestar-se pela existência de Repercussão Geral neste tema (Recurso Extraordinário n. 1.177.984), afirmou que o STJ “tem adotado compreensão de que a advertência ao preso do direito ao silêncio por parte do agente estatal é desnecessária por ocasião da prisão em flagrante, razão porque, em caso de confissão informal do detido, esta não se revelaria ilícita”:
Ocorrendo suspeita de que o agravante estava praticando o delito de tráfico de drogas, os policiais militares poderiam, mesmo sem qualquer informação por ele fornecida, averiguar o local, e diante da localização de grande quantidade de drogas, apreender a substância entorpecente e prendê-lo em flagrante, sem que seja necessário informá-lo previamente sobre o seu direito ao silêncio, razão pela qual não há falar em confissão informal ilícita.
Precedentes.
(AgRg no HC 674.893/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021).
No caso concreto, que originou o RE, o TJSP, por sua 14ª Câmara Criminal, havia analisado a matéria em acórdão da fina lavra do Desembargador Herman Herschander e veio a rechaçar a tese da necessidade de aviso prévio quanto ao direito ao silêncio:
Anote-se, por oportuno, que, no momento da abordagem, os policiais não são obrigados a advertir a averiguada acerca de seu direito de permanecer calada.
Nesse sentido já decidiu esta C. Corte de Justiça:
“TRAFICO. Preliminares. Nulidade na fundamentação da sentença. Valoração pejorativa do direito ao silêncio. Nulidade relativa. Condenação amparada em outros suficientes elementos de convencimento. Subsistência da decisão. Prova ilícita por derivação. Confissão informal tomada sem prévia comunicação do direito ao silêncio. Inocorrência da nulidade apontada. Ausência do dever legal de advertir o acusado sobre o direito ao silêncio durante a prisão em flagrante. (…) (TJSP Apelação no. 0043158-38.2012.8.26.0050 16a C. Criminal Rel. OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO)”.
A advertência quanto ao direito ao silêncio é medida que se impõe quando da realização do formal interrogatório do indiciado e/ou acusado. Não é por outra razão que o artigo 186 do Código de Processo Penal, com redação atribuída pela Lei nº. 10.792/03, em consonância com o preceito insculpido no inciso LXIII do artigo 50 da Constituição Federal, determina ao juiz e à autoridade policial, por força do artigo 6º, inciso V, do CPP que informe o acusado, antes de iniciar o interrogatório formal, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
A notícia da admissão voluntária e informal da imputação por parte da averiguada no momento da prisão em flagrante não configura confissão, mas apenas um elemento da prova testemunhal que a ela se refere (Autos n° 0000866-07.2014.8.26.0070).
A intelecção firmada no julgado relatado pelo Ministro Noronha e pelo Desembargador Herschander, contrasta claramente com o disposto no art. 5º, inc. LXIII, da Constituição Federal, verbis:
LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
A Constituição Federal é clara: o preso será informado do direito ao silêncio. O preso, não apenas o interrogado formalmente, como equivocadamente vieram a interpretar os acórdãos citados.
A legislação infraconstitucional oriunda do Estado Novo, de inspiração autoritária, é silente quanto à necessidade de advertência ao preso ou ao mero investigado do direito ao silêncio. Com efeito, confira-se o que dispõe o art. 6º, do CPP:
Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (…)
V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;
E no Capítulo III, o art. 186 determina o seguinte:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
É evidente que, a despeito da lacuna legislativa, a matéria estava a merecer do STF uma interpretação conforme a Constituição Federal. Aliás, significativos julgados já alertavam para isso. Assim, o Ministro Gilmar Mendes ao relatar o HC n. 122.279:
Destaco, também, que o direito ao silêncio tem uma repercussão significativa na ordem constitucional-penal como se pode depreender de alguns julgados do Supremo Tribunal Federal (HC n° 122.279, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.08.14).
No mesmo sentido, confira-se:
A nova Lei Fundamental da República, ao delinear o quadro das liberdades públicas relativo às pessoas sujeitas à ação persecutória do Estado, outorgou-lhes, dentre os vários direitos nessa Carta consagrados, a prerrogativa de serem informados de suas franquias jurídico-processuais, a de permanecerem em silêncio…
Trata-se de direitos públicos subjetivos, de expressiva importância político-jurídica, que impõem limites bem definidos no campo de desenvolvimento da atividade persecutória do Estado (HC n° 68929-9, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.10.91).
Pois bem. Agora, ao prover monocraticamente o Agravo Regimental no RE n. 1.177.984, o Ministro Edson Fachin reconheceu que os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário estão preenchidos e disse:
A presente controvérsia levada a desate refere-se à obrigatoriedade, ou não, de o Estado informar ao preso do direito ao silêncio no momento da abordagem policial, e não somente no interrogatório formal. A questão é constitucional por dizer respeito à eventual contrariedade do acórdão recorrido, que julgou dispensável a advertência do direito ao silêncio, às normas contidas, sobretudo, no art. 5º, incisos LXIII e LIV, da Constituição Federal.
O tema também possui repercussão geral por manifesta relevância social e jurídica, que transcende os limites subjetivos da causa. Quanto à relevância social, o desate da questão irá orientar a maneira de proceder dos agentes do Estado no momento da abordagem de qualquer pessoa em território nacional, máxime quando, na hipótese de prisão em flagrante, o detido é submetido ao denominado interrogatório informal.
No tocante à relevância jurídica, verifico que o tema guarda estreita relação com os princípios nemo tenetur se detegere e do devido processo legal substantivo, garantias fundamentais para o desenrolar da atividade persecutória em um Estado de Direito. Ademais, este Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, já se manifestou pela significativa importância do direito ao silêncio na ordem jurídico-constitucional (HC 80949, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 30/10/2001, DJ 14-12-2001; ADPF 444, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2018; RHC 122279, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 12/08/2014; HC 68929, Relator(a): CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 22/10/1991, DJ 28-08-1992), o que reforça o relevo e a repercussão do tema em discussão.
Levado o tema à apreciação da Corte no plenário virtual, foi-lhe, sem qualquer divergência, atribuída Repercussão Geral que ganhou o número 1.185 e resume a questão assim:
Obrigatoriedade de informação do direito ao silêncio ao preso, no momento da abordagem policial, sob pena de ilicitude da prova, tendo em vista os princípios da não auto-incriminação e do devido processo legal.
Será um grande passo na afirmação dos direitos individuais e na contenção dos agentes estatais incumbidos da repressão ao crime se o STF afirmar a obrigatoriedade do “Aviso de Miranda” no ato da prisão e não só no interrogatório formal. A verdade não pode ser obtida a qualquer custo; ela é formalizada e deve obedecer às garantias constitucionais. Como advertiu Theodomiro Dias em página de grande inspiração há quase 25 anos: “A eficiência na prestação da justiça em penal não é, pois, um valor absoluto. Em um Estado de Direito, a persecução penal deve estar submetida ao controle do Direito. É função do direito processual penal assegurar que os métodos estatais de prevenção e controle do crime sejam compatíveis com a proteção dos direitos de personalidade-do acusado,1 a sua privacidade, integridade moral e física, identidade pessoal”[4].
[1] Miranda Rights e o processo penal constitucional, publicado em 24/6/2021, in: www.conjur.com.br
[2] O direito ao silencio: tratamento nos direitos alemão e norte-americano, publicado na Revista brasileira de ciências criminais ano 5, n. 19, jul. – set., 1997.
[3] Direito ao silêncio no interrogatório, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, nº 6, abr.-junº, 1994
[4] O direito ao silêncio…, cit., p. 180.
Alberto Zacharias Toron, advogado, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, professor de Processo Penal da Faap e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim
Renato Marques Martins, advogado, Mestre em Direito Penal pela USP, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD, diretor de política sobre drogas do IBCCrim e sócio do Toron, Torihara e Cunha Advogado.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
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