Por Roberto Amaral

É consabido que o império do norte é, hoje, a maior potência econômica, científica e tecnológica do mundo; a maior potência industrial e a maior máquina de guerra que a humanidade jamais conheceu. Ainda é. Lidera os países industrializados e, segundo o Banco Mundial (dados de 2017), é o maior mercado consumidor do mundo, comprando 26% de tudo o que é produzido. No entanto, sua classe dominante permanece preocupada em promover o crescimento econômico e o desenvolvimento, para o que não hesita em valer-se ainda hoje (como o fez, aliás em toda a sua história) dos recursos postos à disposição pela estrutura governamental, a começar pela poderosa força intervencionista do Estado, via investimentos em infraestrutura, energia, materiais avançados, biotecnologia, semicondutores e inteligência artificial. Para essas áreas, e destacadamente em pesquisa, desenvolvimento e educação, o novo presidente Joe Biden anuncia “grandes investimentos governamentais” (The New York Times, 02/12/2020). Enquanto isso, nós, que dos EUA guardamos anos-luz em desenvolvimento científico e tecnológico, optamos pelo suicídio neoliberal que nos condena a mais muitos anos de atraso e defasagem tecnológica, em face não só do chamado “primeiro mundo”, mas até dos países que até bem pouco eram nossos companheiros no esforço por superar o atraso. Somos o patinho feio entre os emergentes.

A cicuta que nos fazem beber é a ideologia do “estado mínimo”, velha política de contenção dos gastos dos monetaristas envelhecidos que serve de pretexto para impedir o desenvolvimento e favorecer a concentração de renda, a aleivosia do “ajuste fiscal” que empobrece o país para garantir os dividendos da banca que financia a dívida pública. O preço é conhecido: queda do PIB, o aumento das desigualdades, do desemprego e da uberização que humilha o trabalhador

A consumação deste verdadeiro crime contra a história, impondo a pobreza de hoje e sonegando a várias gerações futuras o direito ao desenvolvimento, teve seu ponto de partida nos primeiros momentos do golpe de Estado continuado sob o qual vivemos, com a PEC do teto dos gastos, que virtualmente retirou do Estado sua capacidade de promover o desenvolvimento mediante investimentos que precisavam ser maciços em infraestrutura, educação e ciência e tecnologia. Ou seja, exatamente aquilo que fazem hoje norte-americanos, chineses, japoneses e europeus para salvar da catástrofe suas economias. Exatamente o que o Estado brasileiro vinha cumprindo desde 1930, e que nos legou, até os anos 80 do século passado, um crescimento médio de 10% ao ano.

Sob a égide dos Chicago Boys, o PIB brasileiro “cresce” 1,1% em 2018, 2% em 2019, e neste 2020 não passará de 2,2%. Entre 2011 e 2020 a economia brasileira deve “avançar” 0,9%, seu mais fraco desempenho em 120 anos (dados da FGV).

Mas a desgraça, para ser completa, ainda contaria com o auxílio do capitão néscio e sua alcateia de ministros da educação, da cultura e da ciência e tecnologia, associados no assalto à razão.

Depois de destruir todos os projetos estratégicos que encontrou em andamento, como o do setor cibernético, o projeto espacial (com a fragilização da Embraer e a doação da base de lançamentos de satélites de Alcântara aos EUA), e o projeto de desenvolvimento da energia nuclear para fins pacíficos, o governo do capitão insano se volta contra a produção do conhecimento: visa a destruir a educação e a ciência, atacando de morte o ensino e a universidade pública, punindo-a com profundos cortes orçamentários (na casa de R$ 1 bilhão ) e intervindo no comando das universidades e institutos federais de ensino e pesquisa, cuja autonomia é assegurada pela Constituição que desrespeita seguidamente, impunemente, sem peias.

Veja-se o que reza o Art. 207 da CF:

“As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

A clareza do dispositivo diz, a quem sabe ler ou simplesmente não está intoxicado de má-fé, que a autonomia universitária é um pilar das garantias constitucionais que em seu conjunto definem o Estado de direito democrático, a grande conquista da constituinte de 1988. Mas nada disso interessa ao regime de exceção político-jurídica em que vivemos, a partir de 2016.

O ainda capitão-presidente desrespeita a autonomia universitária, desconsidera os coletivos de professores, estudantes e funcionários públicos que, na forma da lei, elegem as listas tríplices destinadas à escolha dos reitores, e nomeia gestores biônicos, interventores de fato, como, aliás, faziam seus colegas mais graduados nos piores momentos da ditadura que nos sufocou por 21 anos, e de cujos socavões emerge a choldra governante de nossos dias.

Ademais do corte do orçamento destinado às universidades federais — a proposta do governo para 2021 está em discussão no Congresso — pune diretamente os ministérios da educação e o da ciência e tecnologia, este em intolerável concubinato com a área de comunicações, cujos recursos foram amputados em 26%, em relação ao que dispunha o orçamento do ano passado.

Este é o Brasil desconstituído pelo bolsonarismo quando o mundo, a partir dos países mais desenvolvidos, investe maciçamente em educação, ciência e tecnologia. Quando o mundo ingressa na chamada quarta revolução industrial, a era do conhecimento, fundada no alto desenvolvimento científico e tecnológico, que requer educação e pesquisa nas zonas de fronteira do conhecimento. Neste ponto, aliás, a única preocupação do governo tem sido no sentido de evitar nosso ingresso na tecnologia 5G, a porta de ingresso ao novo mundo da internet. É, portanto, instrumento do atraso. São políticas desse escopo que nos levam de volta ao início e meados do século passado, isto é, quando retornamos à condição de país agroexportador, dependente dos oscilantes preços das commodities, ditados pela bolsa internacional de nercadorias segundo os interesses dos grandes importadores, como China, EUA, o Japão e a comunidade europeia. Na “república velha”, dos oligarcas e dos grandes fazendeiros, dependíamos das exportações de café; hoje, nossa balança comercial está à mercê das exportações de minério de ferro in natura, soja, frangos etc. Por isso, na modernidade, nossos industriais se transformam em importadores das peças e produtos de seus antigos concorrentes; por isso é mais rentável investir na bolsa ou no câmbio sobrevalorizado do que na produção, apesar da impiedosa redução dos direitos trabalhistas e previdenciários imposta ao povo trabalhador pela casa-grande, habitada por uma classe dominante extrativista que, como Moloch insaciável, suga a produção do trabalho de toda a sociedade. Assim se explica por que a taxa de lucro da indústria chegou a beirar míseros 4%, e a participação da indústria caiu de 26% para algo em torno de 10% do PIB.

E a FIESP e seus pelegos nada têm a dizer.

A onda liberaloide, antipovo e anti-nação, fez com que, com espasmos de desenvolvimento como os logrados nos dois mandatos de Lula, nosso crescimento médio, nos últimos 30 anos, ficasse em torno de 0,8%, enquanto a média mundial, somando desenvolvidos e subdesenvolvidos, marcava algo em torno de 2%. Nosso atraso não é só relativo, é absoluto, e não é fruto do acaso, mas de uma política deliberada. Uma política que, lamentavelmente, deu certo em seus termos.

O suposto respeito humano considerado pelo neoliberalismo pode ser medido pelo seu desrespeito à vida, seja incentivando e mesmo operando a destruição do meio-ambiente, seja na forma criminosa como se comporta diante da Covid-19, ora negando-a, ora desarticulando as ações públicas, intentando desacreditar as administrações estaduais e municipais que decidiram agir contra a pandemia, ora desconsiderando as recomendações de instituições científicas nacionais (como a Fiocruz e o Butantã), e internacionais como a OMS, movendo-se ostensivamente de encontro a todas as indicações a cerca de 180 mil vítimas fatais, em meio a recidiva da infestação do vírus, com consequências que não podem ser antecipadas. O estrago sanitário ainda não foi maior, e mais calamitoso o número de vítimas, porque a população brasileira, isto é, o grande povo que não pode pagar hospedagem de luxo no Sírio Libanês ou na Rede D’Or, contou com a estrutura do SUS, a grande conquista republicana dos constituintes de 1988, mas instituição a qual, exatamente por seus méritos, é sabotada pela elite médico-farmacêutica, pelo mercantilismo dos planos de saúde, pela grande mídia e pelo governo federal, que lhe negaceia recursos.

O neoliberalismo é a feição mais doentia do capitalismo monopolista, a expressão acabada do anti-humanismo. É insanavelmente imoral, pois se assenta no fim da solidariedade. É a barbárie do “salve-se quem puder”, a instauração da sociedade hobbesiana. A sociedade que realiza os piores sonhos da casa-grande brasileira.


ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do Partido Socialista Brasileiro.