Por Lincoln Penna –
Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do Governo e deixando-a construir a sua história e o seu destino. (Parágrafo final do Manifesto dos Mineiros).
Há 80 anos, precisamente em 24 de outubro de 1943, um conjunto de políticos tendo à frente Afonso Arinos de Mello Franco a quem coube a redação final, lançou esse documento que marcou o início efetivo da oposição ao Estado Novo (1937-1945), regime instaurado pelo então presidente Getúlio Vargas e contando com o apoio de militares das três Armas.
A data do lançamento do Manifesto não foi por acaso. Ela reverencia os que tombaram na Batalha de Santa Luzia, onde os liberais foram derrotados no mesmo dia e mês no ano de 1842, portanto passados 101 anos desse episódio em defesa das liberdades. Neste particular, o Manifesto sustenta o retorno das garantias constitucionais desprezadas pela ditadura implantada em nome da ordem e do progresso.
Na verdade, o regime de exceção implantado em 10 de novembro de 1937 fora um golpe retardado, porque ele veio na esteira de uma escalada com vistas à restrição das liberdades democráticas a partir de um suposto plano de tomada do poder pelos “vermelhos”, ou seja, pelos comunistas. Os episódios de novembro de 1935, levantes iniciados em Natal, prosseguido em Recife e culminando no Rio de Janeiro, desde então oficialmente passado a se denominar de Intentona Comunista foi seguida pela Lei de Segurança Nacional, editada em 11 de setembro de 1936.
Essa Lei criou o Tribunal de Segurança Nacional e ensejou um aparato em condições de criminalizar a política. Foi mais precisamente contra esse intuito de fortíssimo teor antidemocrático que amadureceu uma oposição política arregimentando os segmentos alinhados aos valores democráticos e liberais, que culminou na redação do Manifesto, e não por acaso no estado que tal como os demais perdera essa condição, uma vez que o regime estadonovista estabeleceu em sua Constituição outorgada uma República unitária, com isso dissolvendo os estados federados. Porém, mais do que isso, Minas Gerais era um polo político de expressão no contexto nacional e sua voz teria como teve ressonância em todos os entes de uma federação que no papel já não existia mais, não obstante a busca pela sua restauração jamais foi abandonada.
Houve um fato que tem sido mencionado como uma primeira e concreta atitude frente à referida escalada autoritária. Foi a entrevista de José Américo, que havia se lançado para pleitear uma candidatura à presidência da República nas eleições previstas em 1938, cujo pleito obviamente não aconteceu em virtude do autogolpe de Vargas, e entrevista esta concedida ao jornalista Carlos Lacerda para o jornal Correio da Manhã. Com a grande repercussão teve início a censura à imprensa.
As resistências à ditadura vão num crescendo mobilizando várias correntes políticas e organizações da sociedade civil, como os estudantes, os jornalistas, e naturalmente invadindo também as corporações militares, sobretudo quando tem início a Segunda Guerra Mundial, em 1939. Daí, em diante ocorre ao lado de um frenesi diante dos acontecimentos que rolavam inicialmente na Europa as divisões no seio do próprio governo ditatorial. Defecções em parte em razão dos blocos em guerra, de um lado os Aliados (EUA, França, Inglaterra e URSS), de outro o Eixo formado pelos regimes fascistas da Alemanha, Itália e Japão.
A ditadura dava sinais de recuo, não só porque o nazifascismo tornava-se o inimigo a ser combatido, como se avolumavam as vozes a favor da volta das franquias democráticas. Getúlio Vargas fez em março de 1939 um pronunciamento assumindo o compromisso de normalização das atividades políticas sem, é claro, mencionar quaisquer mudanças institucionais. Mas suas “concessões” continuaram com o objetivo de refrear às oposições. Assim, em maio é extinto o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. E ainda através de um decreto-lei marcaria eleição presidencial para 2 de dezembro do mesmo ano.
Como a então maior força política de oposição à Vargas e ao regime, a União Democrática Nacional (UDN), acabou por conhecer um esgarçamento político e porque não dizer ideológico. Em suas fileiras surgira um conglomerado que se autodenominou de Esquerda Democrática, cujos membros em grande parte fundarão o Partido Socialista Brasileiro (PSB). E muito embora muitos não tenham aderido a essa nova sigla surgida evidentemente após a queda do Estado Novo, vários de seus integrantes originários passarão a defender teses bem progressistas, como a Reforma Agrária, por exemplo, ainda que filiados a um partido de tendências conservadoras.
A prova maior de que essa corrente que liderou na esfera política estava em consonância com os novos tempos que viriam a dominar o mundo logo após o fim dos regimes fascistas está no teor do longo Manifesto a combinar o espírito de tolerância no âmbito de uma ordem democrática com o respeito aos princípios de autodeterminação não somente dos povos, como também a liberdade de expressão dos cidadãos, que livres possam expressar suas ideias sem temor da repressão por parte do Estado.
Nesse sentido, vale a pena reler o Manifesto dos Mineiros. Principalmente os próprios mineiros, que como é sabido têm elegido ultimamente e há longos anos a governança federal, ou seja, os presidentes da República. Costuma ser de lá, de Minas Gerais, que surgem dois componentes importantes para o bom fluxo do ambiente democrático: a capacidade de tolerância com os que pensam diferentemente, e o firme e decidido compromisso com as liberdades públicas e democráticas.
Que tais práticas não tenham sido contaminadas com o surto fascista que vem reverberando no Brasil e no mundo.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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