Categorias

Tribuna da Imprensa Livre

O diabo do Papa Francisco na base do estouro das bolsas
Colunistas, Economia, Política

O diabo do Papa Francisco na base do estouro das bolsas

Por José Carlos de Assis

O mercado das cryptomoedas, bitcoin à frente, está virando pó.

Quando prognostiquei isso duas semanas atrás, colegas economistas reagiram com indisfarçável ceticismo, convencidos de que a alta tecnologia por trás dessas moedas anônimas de bandidos, sem garantia dos Estados, as escondia da polícia e as protegia de quebras. Enganavam-se. O máximo que poderiam especular era reconhecer que esse mercado, altamente especulativo, comportava riscos, mas não na dimensão do desastre que eu antevia.

As cryptomoedas devem mesmo ir para o inferno, de onde jamais deveriam ter saído. São moedas do diabo. Moedas de vigaristas, moedas de traficantes de drogas e de mulheres, moedas de negociantes de órgãos humanos retirados de miseráveis que não têm outra coisa para vender, moedas de contrabandistas e fraudadores de impostos. São as moedas dos paraísos fiscais, que também caminham para o inferno, amarrados ao dinheiro que atraem para si e se desfaz com ele. Moedas do capital especulativo, condenado veementemente pelo Papa Francisco.

Como posso sustentar com tanta convicção que as cryptomoedas estão indo para o vinagre, se ontem, depois do mergulho de terça-feira, o mercado parece ter-se recuperado espetacularmente? Acaso tenho o gosto de ficar contra a corrente, como os ganhadores de bolsas. Primeiro, uma advertência: a recuperação de ontem não foi suficiente para cobrir as perdas da véspera. Segundo: em toda onda especulativa, em todos os tempos, há sempre um repique de revalorização nos dias imediatos ao desastre original. Uma curva em forma de V.

Isso, porém, é estatística. Como está os pouco informados sabem, há dois mercados financeiros, integrados entre si, e diferenciados não pela espécie mas pelo grau de comprometimento com a especulação. Nas bolsas de valores se negociam ações que apenas no momento do lançamento em mercado correspondem a alguma forma de valor real, ou seja, a uma empresa ou serviço produtivo. Depois desse momento inicial, a ação sai do campo objetivo e passa ao subjetivo.

Não vale pelo pedaço da empresa ou serviço produtivo que representa, mas pelo que seu portador acha que vale. É um conceito inteiramente subjetivo. Por isso seu valor oscila diariamente no mercado de acordo com o humor da média de seus possuidores. Fatos, iniciativas legais e opiniões de “especialistas” podem intervir na formação desse valor subjetivo, mas sua realidade fundamental, sempre, será subjetiva. É por isso que pessoas “jogam” nas bolsas. No fundo, é um jogo.

Não há um descolamento absoluto da ação da entidade que representa. Se a empresa ou serviço quebrar, há uma possibilidade teórica de que, mesmo não tendo acesso ao valor integral do investimento feito na ação original, seu portador receba alguma compensação num processo judicial por falência ou acordo. Por isso não se pode dizer que o mercado acionário é indiferente à economia física. Ao contrário. No lançamento de ações novas (IPO) ele ajuda a financiar investimento produtivos.

É isso que diferencia o mercado de ações dos cassinos. Caso contrário, ele seria apenas um lugar para viciados em jogos. Cassino mesmo é o mercado de bitcoins, ou cryptomoedas. Aí a ação negociada sob a forma de uma moeda virtual não vale absolutamente nada, exceto o que está na cabeça do especulador. Seu valor de venda é determinado pelo valor que o comprador está disposto a pagar por ela. Não há nada debaixo. Apenas pó. Se é fundamentalmente pó, nas crises reais ao pó voltam!

Como se tem sustentado há tanto tempo o mercado de cryptomoedas, se o que se negocia nele não tem valor real? E como tanta gente ganhou tanto dinheiro nele? É aí que aparece uma conexão entre economia e moralidade. O valor da cryptomoeda está no fato de que ela esconde crimes. O capitalismo neoliberal é um sistema quase inteiramente desregulado, mas há muita gente que ganha dinheiro nele por operações ilegais, não declara renda e nem quer pagar impostos, mas quer desesperadamente escondê-lo.

Essa faculdade de não pagar impostos e não se deixar rastrear pela polícia é uma implicação da evolução tecnológica. Um especialista em bitcoin lhe explicará detidamente porque o sistema é blindado contra falhas. Objetivamente, ele é quase 100% isso. O que ele não consegue é entrar na mente das pessoas e convencê-las de que o bitcoin nunca quebrará.

Na realidade, todos que aplicam nessas moedas virtuais intuem que são vulneráveis, mas apostam que alguém quebra primeiro e ele sai a tempo de evitar a própria quebra.

A quebra se caracteriza quando não há demanda pela moeda. A lógica de toda pirâmide financeira, um crime tipificado no Código Penal, é idêntica à da bitcoin. Ganha quem primeiro entra e primeiro sai do mercado especulativo. O aplicador novo paga pelo antigo, e assim a pirâmide vai se formando. Até que desaba. Por se tratar de um mercado subjetivo, qualquer fato real ou imaginário pode desencadear o processo de queda. Basta que o último a sair dele não seja substituído por quem entrar.

Não foi por conta da virtual quebra da Evergrande que o mercado de cryptonmoedas está indo para o pó. Um sinal de alerta foi dado quando um especulador foi pego com milhares de reais em várias moedas em Curitiba. A Polícia Federal já estava no rastro dele e deu o golpe. Quando se fizeram as contas, verificou-se que o especulador milionário, conhecido como Faraó, montara uma fraude de R$ 38 bilhões. A Justiça agiu, o dinheiro foi bloqueado. Faraó parou de pagar credores.

Quando disse que essa fraude era suficiente para fazer o mercado de modas virtuais desabar, um economista cético me contradisse: não, você está enganado. O mercado de bitcoin é gigantesco. Essa quantia não tinha escala para abalar o conjunto. Respondi com a metáfora conhecida da Teoria do Caos: um borboleta que bate ases na Argentina provoca um furação na Califórnia. Em tempos de mudanças climáticas dramáticas, essa metáfora, aplicável ao tempo, é perfeita para moedas virtuais.

Mas os céticos insistem que já houve casos em que flutuações fortes em um ou dois dias nos valore de moedas virtuais não resultaram em quebradeira geral. É verdade. Entretanto, é preciso observar o ambiente. Estamos enfrentando situações de diferentes crises simultâneas no mundo – ambientais, energéticas, hídricas, de segurança pública -, a que no Brasil se superpõe a crise inflacionária, o aumento dos juros e a escalada do custo de vida. Para não falar na crise institucional.

A questão da crise institucional é terrível. Pois é através da intervenção institucional nos mercados que governos podem debelar crises financeiras e econômicas agudas. O governo de Bolsonaro é indiferente às crises em curso e contribui para agravá-las com seus arroubos delirantes. É um fator de agravamento da situação. Daí conclui-se que uma crise limitada no mercado de bitcoins contamina outras moedas virtuais, e estas, o mercado de moedas comuns e os mercados reais.

É mais do que uma tempestade perfeita. É o caos absoluto. Uma tempestade perfeita passa e tudo volta ao normal. Já uma crise aguda de interação entre mercados objetivos e subjetivos se estende indefinidamente no tempo. Os mercados virtuais são instantâneos. Os mercados reais dependem de deslocamentos no espaço físico. Reconciliá-los a curto e médio prazo é quase impossível. Além disso, a esfera monetária especulativa é gigantesca, da ordem de centenas de trilhões de dólares, em relação à economia real dos bens e serviços físicos.

Para reconciliar a esfera especulativa com a esfera real, impedindo a inflação, seria preciso uma convergência: ou o mercado da economia real se expande rapidamente, na forma de um crescimento acelerado do PIB e da renda real, ou a esfera especulativa se contrai. A primeira alternativa, pelas circunstâncias atuais, está descartada. O BC, claro, pode tentar promover uma contração suave da esfera especulativa. Para isso, seu único instrumento é aumentar a taxa de juros. O resultado será mais contração da economia real e mais queda da demanda, mais recessão.

A única esperança, sobretudo para a economia ocidental, é que a China, a economia comunista, intervenha para regular seu mercado imobiliário, fonte da crise na órbita real, e salve também o capitalismo especulativo do ocidente. É uma ilusão. A China só pode fazer isso contra seus próprios interesses. É que, do outro lado, o banco central americano está injetando dinheiro no mercado para salvar o sistema financeiro ocidental. Isso implica desvalorização do dólar e de reservas chinesas de trilhões de dólares (eram de 4 trilhões, hoje já não sei quanto é) aplicadas no mercado americano. A única convergência possível é, pois, a esfera financeira especulativa virar pó.

A imaginação de Shakespeare atribuiu a Ricardo III a seguinte sequência para justificar a perda de seu reino: Por causa de um prego perdi a ferradura; por causa da ferradura perdi o cavalo; por causa do cavalo perdi a batalha; por causa da batalha perdi a guerra; por causa da guerra, perdi o Reino. E tudo por causa de um prego.

Bitcoin, moeda subjetiva, e Evergrande, matéria objetiva contaminada, são os pregos da derrota do sistema financeiro especulativo ocidental na era das comunicações e da internet. É a derrota do dinheiro do ócio e do crime, que arrasta consigo também a economia real.

Uma derrota escatológica, um Armagedon financeiro, que o Papa Francisco, evocando na pós-modernidade um conceito anacrônico da Idade Média, associa à ação direta do Diabo ocidental diante da indiferença evangélica de um Buda chinês.

JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


Tribuna recomenda!

Related posts

Deixe uma resposta

Required fields are marked *