Por Flávia Oliveira –
Foi Exu o encarregado de andar de aldeia em aldeia para ouvir do povo todas as vivências possíveis.
Ventura e drama. Vitória e derrota. Justiça e vilania. Saúde e doença. Vida e morte. Essas histórias foram dar nos relatos primordiais que se repetem na vida humana e se revelam na leitura oracular. “Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes”, escreveu Reginaldo Prandi em “Mitologia dos orixás”. Elza Soares foi a mulher brasileira que experimentou —e cantou — dissabores e delícias, todos eles. No país, ninguém como ela. Impossível imaginá-la ausente.
Elza partiu súbita e serenamente como cabe aos merecedores. Teve existência completa. Amou e sofreu e pariu e enterrou e bateu e apanhou e brigou e aproveitou e riu e chorou e ganhou e gastou e cresceu e envelheceu. Morreu aos 91 anos, 70 de carreira, na métrica temporal que pactuamos, porque nem a vida nem a obra de Elza cabem nesses intervalos. Ela própria nunca tratou da idade, definia-se atemporal. Tinha consciência de que sempre existiu, porque tudo o que passou não dá conta de uma encarnação. Elza Soares, Exu que é, pertence ao ontem, ao hoje, ao amanhã.
Foi içada a voz do milênio, no singular, mas era plural. Será lembrada por se fazer ecoar por dois milênios. Abriu caminho no século XX; atualíssima, adentrou o XXI. Menina ainda, avisou a Ary Barroso que vinha do Planeta Fome, o mesmo de Carolina Maria de Jesus em “Quarto de despejo” (1960) e de 19 milhões de brasileiros nestes tempos de pandemia e crises. Elza Soares da Conceição saiu da Vila Vintém, foi ungida em Água Santa, conquistou o Brasil. Foi amada, renegada e, por fim, idolatrada.
Partiu do samba, abarcou um mundo de estilos. Cantou o morro, a cultura popular, o amor, a dor, a violência de gênero. Emprestou sua voz rascante à política, à justiça social, ao direito das mulheres e dos LGBTQIA+. Defendeu o povo negro, denunciou o racismo, festejou conquistas. Reverenciou os blocos de sujo do carnaval de rua e as escolas de samba — nem rivalidade nem contradição. Interpretou na Avenida o samba da Mocidade Independente de Padre Miguel, território de origem. Pela agremiação foi homenageada no carnaval inesquecível de 2020, o último que experimentamos.
Elza é mito, porque atravessou com coragem e dignidade, afeto e raiva, franqueza e transparência os altos e baixos a ela reservados. Casou-se e foi mãe ainda menina; sofreu violência doméstica, perdeu filho, enviuvou; foi do trabalho precário à fama. Entregou-se ao amor da vida e perdeu tudo. Foi esquecida e ressurgiu ícone de jovens recém-saídos da adolescência. Sua existência está gravada em discos e flutuando em narrativas orais que subvertem espaço-tempo.
Elza viveu para o trabalho e exerceu seu ofício até o fim. Será lembrada por “Lata d’água”, “Se acaso você chegasse”, “Eu bebo sim”, “Salve a Mocidade”, “Canta canta, minha gente”, “Meu guri”, “A carne”, “A mulher do fim do mundo”, “Maria da Vila Matilde”, “Bloco de sujo”. No último mês de 2021, lançou o álbum derradeiro com João de Aquino — apenas voz e violão. Sublime. Dois dias antes de morrer, Elza gravou DVD em São Paulo, conforme contou o empresário Pedro Loureiro.
Ela partiu em casa, uma cobertura recém-adquirida no Rio, no dia do padroeiro da cidade, o mesmo em que Garrincha, seu grande amor, também morreu, 39 anos atrás. São Sebastião é relacionado nas macumbas cariocas a Oxóssi, orixá que será enredo da Mocidade no próximo carnaval. Uma escola, duas divindades.
O santo que a cidade homenageia no 20 de janeiro, de agora em diante, passa a dividir seu feriado com Elza, a deusa, Soares.
Publicado inicialmente em O Globo. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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