Por Carlos Mariano

A Em Cima da Hora é uma das escolas de samba mais tradicionais do carnaval carioca e com uma galeria recheada de bons samba-enredos. Podemos citar o imortal “Os Sertões”, de 1976, do saudoso Edeor de Paula que, infelizmente nos deixou neste ano, ou os não menos clássicos “O Saber Poético da Literatura de Cordel”, de 1973, do lendário Baianinho, fundador e maior compositor da escola, e Trinta e Três, Destino Dom Pedro II, de 1984, da dupla Guará e Jorginho das Rosas.

Muito merecem destaque, mas vou me ater um samba-enredo pouco comentado pela crítica especializada: ‘’Ouro Escravo”, de 1969, belo samba assinado pela dupla Jair dos Santos e Normy de Freitas.

Ouro Escravo foi o tema escolhido pela Em Cima da Hora para o carnaval de 1969 em plena vigência da ditadura militar. A narrativa do enredo trazia a assinatura do jovem Ney Roriz, intelectual de classe média, engenheiro, agitador cultural e um dos fundadores da Em Cima da Hora ao lado de Haroldo Diniz Gonçalves o Leleco, João Severino (o famoso Baianinho) e o conhecido pesquisador, Sérgio Cabral (o pai daquele…).

Roriz começou sua carreira de autor e pensador dos carnavais da Em Cima da Hora no ano anterior, em 1968. Quando a ditadura militar se radicalizou na perseguição aos que defendiam a liberdade e a democracia em todos os seus aspectos, Roriz escreveu o enredo “Anita Garibaldi – Amor e Revolução”, uma ousadia para uma pequena escola de samba suburbana do bairro de Cavalcanti. Mas Roriz não se intimidou e, trouxe para a pista uma desafiadora Anita que foi à guerra por amor e estava ligada metaforicamente aos hippies e ao revolucionário Che Guevara. Tudo passou na avenida carnavalizado e sem o impedimento dos censores do regime. Talvez, pelo fato de ser uma escola modesta e do segundo grupo do carnaval carioca, essa ode revolucionária de Roriz não chamou tanta a atenção dos agentes da repressão. O fato é, que os jurados gostaram e deram vários 10 para o enredo de Roriz, levando a Em Cima da Hora a conquistar o título do grupo 2 e ter o direito de desfilar entre as grandes escolas de samba do Rio de Janeiro, agora no grupo 1.

No desfile do carnaval de 1969 Roriz não se fez de rogado e continuou na pegada de enredos históricos e com personagens que não frequentavam nem os livros didáticos e nem a maioria de enredos das escolas de samba. Grande parte delas insistia nos enredos dos grandes vultos da nossa história que reforçavam aquilo que o Estado queria que a cultura popular fizesse: o culto por uma história que reverenciasse a identidade nacional e não desvendasse os nexos e conexões dos vários sujeitos sociais das massas com a própria história.

O carnavalesco Fernando Pamplona, com a chamada revolução salgueirense, no início da década de 1960, começou a abordar de forma mais contundente os temas relacionados à cultura negra. Foi assim que a Academia, apelido da Acadêmicos do Salgueiro, trouxe para a avenida, em 1960, “Quilombo dos Palmares”, Chica da Silva”, em 1963, e “Chico Rei”, em 1964. Esses enredos salgueirenses criaram uma espécie de escola de enredos que abordam a história do Brasil na perspectiva de identificar o negro criador da escola de samba desde 1928, como sujeito da sua história e, consequentemente, da história do Brasil.

Inserindo-se nesse “espírito salgueirense negro”, é que Ney se debruça na história econômica do Brasil e cria uma peça original de enredo: “O Ouro Escravo”.

O samba dos compositores Jair dos Santos e Normy de Freitas tem como destaque a letra, focado na econômica do Brasil colonial a partir dos seus impactos sociais. Nos versos do refrão, o samba afirma que o negro africano era o braço produtor das riquezas do Brasil. Os autores acrescentam no samba, talvez, a parte mais incisiva e inovadora da narrativa do enredo de Roriz: é a primeira vez, até aquele momento, que um enredo sobre o tema da escravidão negra, não é tratado apenas pelo aspecto da coisificação do escravizado ou do sofrimento pelo sofrimento. Na narrativa de Roriz a coisificação do homem negro e seu sofrimento de maneira nenhuma são negados, contudo, Roriz diz que é somente o homem africano quem trabalhava no Brasil Colônia. Assim, ele simboliza um papel histórico valoroso para a participação do negro na história colonial, e mostra que quem produz riqueza não são os donos dos meios de produção e sim, as forças produtivas. A interpretação histórica que Roriz dá à participação do negro escravizado no tempo do Brasil colonial, em plena ditadura militar é inovadora e extremamente ousada.

Para Roriz, o que deveria valer como “ouro” nas sociedades era o trabalho das pessoas, não as riquezas naturais. Uma interpretação social da história econômica que se contrasta com os ufanismos dos temas nacionais tão em moda na época no mundo do samba-enredo.

Pena que os jurados não foram mais complacentes nas suas notas com esse inovador e genial enredo de Ney Roriz para a Em cima da Hora. A escola de Cavalcanti tirou notas baixíssimas em boa parte dos quesitos e foi infelizmente rebaixada para o grupo 2, deixando de desfilar entre as grandes no Carnaval seguinte.

Roriz, indignado com as notas recebidas pelos jurados, abandonou por décadas a função de idealizador e criador dos enredos. Coisas do mundo do samba… Ainda bem que Roriz voltou a escrever enredos, retornando para a Em Cima da Hora na década de 1980. É por essa e outra que Ney Roriz é dos maiores nomes do nosso Carnaval, especialmente quando se fala sobre inovação e criatividade de enredos.

Em Cima da Hora 1969
O Ouro Escravo
Autor do Enredo Ney Roriz
Compositores Jair dos Santos e Normy de Freitas

Do homem africano
Ressaltamos o valor
Nestas páginas marcantes
Que o Em Cima da Hora desfolhou

O ouro escravo
No tempo do Brasil colonial
Brilha nos anais desta história
Que apresentamos neste carnaval

Solto no campo
Na serra ou no mar
O índio bronzeado não pudera escravizar
Enquanto o negro era martirizado
Na escavação do ouro
Trabalhando sem cessar

A toda crueldade resistia
Oh! Quanto o negro sofria

A exploração era geral
Na mineração e também no vegetal
O pau Brasil
De um século para o outro sumiu
Transformado em anilina
Enriquecendo o tecido que o colo de ricas damas cobriu

E as montanhas de esmeraldas
E as pepitas brilhantes
Aumentavam as ilusões
Dos aventureiros bandeirantes

Ô ô ô lara, lara, ra, ra, ra
Só o homem africano era braço produtor
Que mais tarde a Lei Áurea libertou


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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