Por José Carlos de Assis

A guerra na Ucrânia não é uma luta entre mocinhos e bandidos. Há culpados dos dois lados.

Os primeiros deles são os próprios ocidentais, que pretenderam, desde a administração de Bush pai em 2008, abrir as portas da OTAN para a Ucrânia, estendendo a pressão da Aliança sobre as fronteiras da Rússia. Vladmir Putin, seguindo a trilha de seu antecessor, Boris Yeltsin, advertiu então ao presidente norte-americano, com toda a clareza, que isso seria considerado, à vista do artito 5º. do Tratado da OTAN, uma ameaça direta à segurança russa.

O artigo 5º. estabelece que um ataque a um país membro é considerado um ataque a todos os países da Aliança, e deve ser respondido nesses termos. Na situação de hoje, por exemplo, a invasão da Ucrânia pela Rússia desencadearia imediatamente a terceira guerra mundial. Por outro lado, a eventual utilização do território ucraniano para uma invasão da Rússia (ou medidas provocativas para desestabilizá-la) teria o mesmo desfecho. Dados os riscos envolvidos, nunca houve adesão unânime, mesmo no Ocidente, ao pedido de adesão da Ucrânia.

Uma das vozes discordantes da adesão, dentro do governo norte-americano, foi de William Burns, ex-embaixador na Rússia e atual diretor da CIA. Segundo ele, a adesão prepararia “um terreno fértil para a intervenção russa na Crimeia e no leste da Ucrânia”, região separatista. Foi justamente o que aconteceu. Já entre os especialistas civis, havia as mesmas dúvidas. Para Henry Kissinger, o grande geopolítico do século XX, a melhor saída era que a Ucrânia, em lugar de aderir à OTAN, desempenhasse um papel “neutro” de ponte entre Ocidente e Oriente, como a Finlândia na Guerra Fria.

Dentro da Ucrânia, desde a independência em 1993, forças políticas contra e a favor da adesão se alteraram no poder, sem decisão e sem uma manifestação clara de interesse por parte da população. Em 1910, o presidente Viktor Yanukovych, simpático aos russos, declarou que queria ser um país não alinhado, como uma ponte entre a Rússia e a União Europeia, dentro da fórmula de Kissinger. Quatro anos depois, porém, o frágil equilíbrio seria rompido, com a derrubada do presidente eleito por um golpe.

Assumiu depois do golpe o presidente Petro Poroshenko, um aliado do Ocidente, que começou a pressionar pela adesão à OTAN. O golpe que o levou ao poder havia sido claramente apoiado por forças políticas e de informação ocidentais, com participação inclusive de ONGs financiadas pelo Departamento de Estado. Houve ameaças por parte dos bilionários ocidentais de levar a instabilidade para dentro também do território russo, conforme análise da mais insuspeita revista sobre relações internacionais dos Estados Unidos e do mundo, a “Foreign Affairs” (set/out 2014).

A reação de Putin foi anexar a Crimeia e apoiar os separatistas do Leste, todos de população majoritariamente russa. Os ocidentais regiram com sanções, em geral ineficazes. Com os acordos de Minsk de 2014, houve um cessar fogo, mas a situação ficou em equilíbrio instável, devido a frequentes violações. Finalmente, com a eleição do inexperiente politicamente, embora carismático  Volodymyr Zelensky, um artista cômico, para a presidência da Ucrânia, sua insistência em entrar para a OTAN a qualquer preço, instigado pelas potências ocidentais, reincendiou a crise.

É indesculpável a invasão russa da Ucrânia, mas a obcessão de Zelensky para entrar para a OTAN é igualmente indesculpável. Se tivesse um pouco mais de experiência política, e melhores conselheiros do lado europeu, não exporia seu país e seu povo ao risco de uma guerra, sobretudo numa situação em que, antes do cerco russo, não havia qualquer indício de que Moscou pretendia atacar a Ucrânia.

Culpa ainda maior coube aos dirigentes europeus. Para cumprir um princípio de caráter geral – o de que a Aliança não rejeitaria propostas de adesão por parte de países soberanos -, estimulou os nacionalistas (e golpistas) da Ucrânia a acreditarem que suas portas estavam abertas para ela, sem considerar as questões geopolíticas envolvidas. Na verdade, soberania, assim como liberdade, não são conceitos absolutos. A soberania e a liberdade de um vai até onde começam as do outro. A segurança russa, diante do bloco expansionista da OTAN, tinha que ser considerada em relação às pretensões de soberania da Ucrânia.

Questões ainda mais abrangentes estão envolvidas.

Depois da retirada norte-americana do Afeganistão, o presidente Joe Biden fez um discurso na ONU, em setembro do ano passado, em que trouxe esperanças fantásticas de uma mudança radical na política externa do país. Condenava a busca de hegemonia pela guerra e exaltava a diplomacia como o principal meio de resolver conflitos internacionais. Fiquei tão entusiasmado com esse discurso que escrevi um livro, “A Era da Certeza”, confiando em que estávamos entrando numa nova era de relações políticas no mundo.

Minha primeira decepção ocorreu com as eleições da Nicarágua. Ao mesmo tempo em que se realizava, em Glasgow, a conferência da ONU sobre o clima, ou COP26, que exigia uma posição absolutamente consensual dos países em torno de ações concretas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, Biden anunciou que os Estados Unidos não reconheceriam os resultados das eleições nicaraguenses por causa de violações não provadas de direitos humanos. A Nicarágua, naturalmente, não tem nenhum peso na geopolítica mundial. Mas a declaração de não reconhecimento do resultado das eleições era uma provocação à Rússia, sua aliada, que provavelmente por isso não teve uma presença expressiva em Glasgow.

O pior não foi isso. Em novembro, Biden fez uma videoconferência com 110 países supostamente democráticos para criar uma espécie de bloco contra a China e a Rússia, sob o pretexto de que seus dirigentes são considerados autocratas. Assim, ressurgia a política de blocos, agora fortemente condenada pelos chineses. E o que já havia sido um erro depois do fim da União Soviética, quando a OTAN, a aliança militar do Ocidente, deveria ter sido extinta com o Pacto de Varsóvia, a Aliança sob liderança soviética, ressurgiu sob iniciativa norte-americana, contrariamente a suas promessas.

Se tivesse havido, por parte dos Estados Unidos e de seus aliados da OTAN, uma indicação clara de que a Ucrânia não seria aceita no bloco, mesmo porque é um país em conflito – bastaria um voto contra, segundo o seu Tratado –, os russos seriam atendidos em suas exigências principais e não haveria o motivo principal para guerra. Os que acham que a simples presença de uma Ucrânia hostil na fronteira não chega a constituir ameaça à segurança da Rússia ignoram que tem havido uma ação militante por parte da inteligência e mesmo das ONGs ocidentais na desestabilização do país, que representa um desafio à hegemonia norte-americana, junto com a China.

Para a solução da crise, a China desempenhará um papel vital. Já há, da parte norte-americana, quem a ameace também com restrições, caso dificulte a aplicação das sanções financeiras impostas à Rússia. Mas isso não pode chegar a um ponto em que todos os principais atores no campo internacional, em todos os lados, fiquem sem margem de manobra. O Brasil está no meio do furacão. Uma das suas grandes esperanças de escapar das políticas econômicas neoliberais que lhe foram impostas nas últimas quatro décadas, sob o tacape do FMI, está em risco: o bloco BRICS, do qual é membro, junto com Rússia, China, Índia e África do Sul.

Existe um Fundo BRICS, para financiar projetos de desenvolvimento nos países membros. Nessa altura, é difícil saber o que vai acontecer com ele. Quando foi constituído, não havia razões para ficar absolutamente desvinculado do sistema financeiro ocidental. Agora, se estiver desvinculado, servirá de válvula de escape para a Rússia. Nesse caso, porém, o que farão os norte-americanos? E como ficaremos nós nessa embrulhada?

Esta guerra é uma estupidez, provocada, em última instância, por um ator cômico politicamente inexperiente e conselheiros oportunistas e irresponsáveis da União Europeia. Mas houve uma reação desproporcional e violenta da Rússia, levando a uma ameaça regional e mesmo universal aos Direitos Humanos e nos colocando diante de uma grande tragédia humanitária. Mas não me venham dizer que Zelensky, o presidente da Ucrânia, por chefiar uma resistência heroica do povo ucraniano, é, ele próprio, um herói. Não é.

Zelensky divide com os russos a responsabilidade pelo resultado do conflito, que inclui milhões de refugiados, milhares de mortos entre militares e civis e os próprios milhares de soldados ucranianos que convocou para um combate que sabe que vai perder. Guerras provocam perdas sociais e pessoais terríveis. O que a televisão mostra é assustador, mas não é tudo. Portanto, não me venham falar também em crime de guerra.

O crime é a guerra em si, e é provocada juntamente por bandidos e mocinhos, como é o caso desta guerra na Ucrânia.

JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Autor de “A Era da Certeza”, que acaba de ser lançado pela Amazon. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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