Por José Carlos de Assis

Sejamos sinceros: fomos nós, da classe média, que elegemos Bolsonero. Ele estava mais ou menos quieto no nicho da extrema direita e nós fomos buscá-lo para lhe dar mais visibilidade nacional. Sua missão eleitoral mais relevante, segundo Flávio Bolsonaro, não era tanto ganhar as eleições, mas firmar-se como o grande pilar de uma ideologia radicalizada. Nesse contexto, sua missão passou a ser liquidar o PT, o maior símbolo da esquerda, com a pretensão ao mesmo tempo banal e absurda de acabar com o socialismo no mundo.

O cansaço com os governos do PT não era suficiente para derrotá-los. Era preciso um elemento adicional. Esse elemento é que foi o componente essencial de uma classe média que ignorou o que tinha ganho nas administrações anteriores e olhou com avidez para cima, isto é, para as oportunidades que lhe poderiam dar um governo de direita chefiado por um maluco radical, embora pouco conhecido. Assim, o PT perdeu as eleições não propriamente por caso de erros passados mas por causa da idealização de um futuro que lhe abria o apetite.

Desde as manifestações de 2013, muito confusamente interpretadas pela imprensa, podia-se perceber que o cerne da questão social no Brasil não eram os 30% mais pobres, mas os 30 ou 40% intermediários. Por diferentes razões o terço mais baixo da sociedade estava satisfeito com o regime. Acima deles, porém, a classe média queria mais. É uma tendência humana natural: buscar sempre mais. Entretanto, na estrutura produtiva brasileira, não havia espaço para esse tipo de acomodação. Os bancos estavam sugando tudo com juros extorsivos.

A situação favorecia um farsante como Bolsonaro. A propósito, nem sei se a palavra farsante se aplica a ele. De fato, ela tem um sentido de inteligência que falta a Bolsonaro. Ao vencer a eleição, ele despejou sobre a sociedade um conjunto de medidas contraditórias, muitas das quais contra seu próprio eleitorado, conforme aconteceu, por exemplo, com os caminhoneiros. Perdido no seu labirinto, tornou-se refém da curriola de generais da reserva também despreparada para o Governo que tomou de assalto o Planalto.

O desencanto com Jair Bolsonaro é o desencanto apenas da classe média que o elegeu. Todas as pesquisas de opinião mostram que o primeiro terço está firme a favor dele. Entretanto, como se produziu a mágica pela qual os mais pobres se tornaram sólidos aliados do capitão? Pelos mecanismos convencionais de doutrinação “natural” na sociedade brasileira: a influência do pequeno empresário, administrador de empresas, pequeno proprietário, a dona de casa com renda média, profissionais e mulheres de profissionais, e assemelhados.

Embora o terço médio de classe média esteja morrendo de vergonha – o critério é, principalmente, estético, e não econômico – pelo presidente que ajudaram a eleger, o terço inferior, que se havia comprometido psicologicamente com o candidato não quer voltar atrás da “palavra” empenhada. Note-se , a propósito, que esse é o terço da sociedade que pensa em termos de “honra”, de palavra dada que não pode ser revertida. Ele é indiferente a ganhos materiais. Por isso aceitam as traições de Bolsonaro aos eleitores de mais baixa renda.

Não é simples sair dessa armadilha. A classe média que elegeu Bolsonaro não é um interruptor que se aperta de um lado para acender a luz e o outro para apagar. Ela já está fora do esquema Bolsonaro. Mas não tem instrumento para forçar a saída dele do poder. Eventualmente, pode ter a ajuda da classe alta, mas esta é fundamentalmente hipócrita: ela está se lixando para o que acontece com a sociedade e com o país. Numa turbulência qualquer, ela pega o avião e se manda para o exterior, ou algum paraíso fiscal.

Se quisermos tratar a situação brasileira de forma realista, devemos esquecer as patifaria da classe média e buscar sua aliança num projeto de unidade nacional para o Brasil. O conceito de classe média usado nessa análise ajuda, pois é um conceito nebuloso, e isso facilita o arrependimento “cristão” não propriamente identificado pelo que tenha sido feito nos últimos anos, a partir do impeachment. É importante também a colaboração do Exército, na medida em que o Exército que está aí não carrega nenhuma culpa coletiva pelo AI-5.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS  é jornalista, economista, escritor e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.