Redação

Os 30 anos de atuação de Viviane Girardi na advocacia fizeram dela uma profissional preparada para enfrentar todos os (muitos) obstáculos da profissão. Ainda assim, ela iniciou 2021 com um bom motivo para sentir um frio na barriga: nos primeiros dias do ano, a doutora em Direito Civil pela USP se tornou a primeira mulher a ocupar a cadeira de presidente da Associação de Advogados de São Paulo (Aasp), uma das mais tradicionais entidades de classe do Direito brasileiro.

Não é pouca coisa, afinal neste ano a associação vai completar seu 78º aniversário. Tendo a apoiá-la uma diretoria majoritariamente feminina, Viviane enfrenta o desafio de mostrar ao mundo do Direito que uma mulher é capaz de conduzir tão bem quanto qualquer homem, ou melhor, uma entidade que representa uma classe tradicionalmente masculina. Mais uma vez, não é pouca coisa.

Como a nova comandante da Aasp faz questão de ressaltar, há muitas mulheres na advocacia, mas elas estão concentradas na base da profissão, longe dos postos de comando — seja nos escritórios, seja nas associações classistas. E Viviane sabe muito bem que um bom desempenho no comando da associação pode dar força para uma mudança nesse quadro.

Em entrevista exclusiva à ConJur, a presidente da Aasp (que já foi diretora cultural, segunda secretária, primeira secretária e vice-presidente da entidade) fala sobre a grande responsabilidade de cumprir o papel de pioneira, a situação da advocacia brasileira em tempos de “lava jato” e o que será da profissão quando a crise causada pela Covid-19 passar.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Qual a importância para a advocacia brasileira de uma entidade tão tradicional como a Aasp ter, enfim, uma mulher na presidência?
Viviane Girardi — O significado é bastante importante, tem impacto e revela muita coisa. Revela, por exemplo, que as entidades perceberam que a representatividade feminina é importante, até porque nós representamos uma base significativa dos associados. Nós já tínhamos, na verdade já temos, uma certa igualdade em termos do exercício da profissão. O que a gente ainda almeja é uma igualdade maior em termos de representação, já que a presença masculina nos cargos de poder é muito maior do que a das mulheres. Mas nós temos hoje a secretária municipal de Justiça (da cidade de São Paulo, Eunice Prudente), a procuradora-Geral do Estado (de São Paulo, Maria Lia Pinto Porto Corona)… Então essa transformação da sociedade está fazendo com que esse movimento acabe acontecendo.

ConJur — No Brasil, as mulheres já são maioria nos cursos de Direito e entre advogados de até 40 anos, mas, como você disse, ainda têm pouca participação nos cargos de comando, inclusive nos escritórios. Como mudar esse quadro?
Viviane Girardi — Isso é um reflexo da história. Ou melhor, da sociedade. O curso de Direito sempre foi masculino, o Poder Judiciário sempre foi um espaço majoritariamente masculino, porque a sociedade era assim. Hoje a gente já superou isso. As faculdades mostram que, na verdade, todas as profissões podem ser exercidas indistintamente por homens ou por mulheres. Mas nós ainda temos dentro dos escritórios de advocacia, das empresas, dos departamentos jurídicos, e mesmo dentro do Judiciário, uma estrutura que reflete o momento anterior. Então isso é um dado. E é indiscutível que as mulheres são mais sobrecarregadas porque ainda cuidam das questões relacionadas à família e à casa, a sociedade ainda não absorveu isso como uma coisa que deve ser compartilhada. Esse também é um sobrepeso na carreira das mulheres.

ConJur — Há uma questão cultural a ser superada?
Viviane Girardi — Ainda não há um compartilhamento igualitário das tarefas domésticas com os homens, com os pais. Então, obviamente, isso é um fator que pesa, que pressiona a carreira das mulheres. E que dificulta, por sua vez, que elas subam aos postos de comando e direção. Não impede, mas dificulta. Para resolver isso, primeiro as instituições e as empresas, os escritórios de advocacia, precisam ter consciência disso, já que o ganho que as mulheres dão aos cargos de comando e de poder é significativo. A gente tem competências, skills, exatamente iguais aos dos homens, mas a gente também tem uma visão mais criativa, muitas vezes inovadora para contribuir com os ambientes de trabalho e com a gestão dos negócios, no caso dos escritórios.

ConJur — O que mais a advocacia ganha com uma maior presença maior feminina no comando?
Viviane Girardi — De modo geral, todas as pesquisas mostram que quando você tem diversidade dentro do comando, a gestão é mais criativa. A diversidade traz esse ganho. Os homens, historicamente, não são tão sensíveis, então eu acho que esse olhar que as mulheres têm, de mais cuidado com as pessoas, é um fator que contribui para a melhoria da gestão. Agora, indiscutivelmente, do ponto de vista da administração, as competências das mulheres são iguais às dos homens.

E outra coisa que eu percebo é que as mulheres não têm um anseio muito grande de poder, mas de transformar os ambientes, fazer as mudanças. E isso é uma visão mais contemporânea da gestão. É uma gestão preocupada com os negócios, mas também com as pessoas.

ConJur — Para quem atua como uma pioneira, como é o seu caso no comando da Aasp, a responsabilidade é maior do que para outros presidentes?
Viviane Girardi — Ah, eu acho que sim, afinal eu estou representando as mulheres. Porque quando você é pioneira, você está abrindo uma porta. E eu aceito essa responsabilidade de bom grado, mas não vou aceitar jamais a condição ser a última. Eu acho que têm de vir outras mulheres, isso tem de seguir, tem de ser um caminho natural para as mulheres agora. Agora é um fato inédito, mas o meu sonho é que seja uma coisa natural daqui para frente.

ConJur — Recentemente, a OAB implementou a paridade de gênero nas chapas de suas eleições, além de uma cota racial de 30%. Qual a importância de ações como essa para a advocacia brasileira?
Viviane Girardi — Veja, nós importamos o conceito de política de cotas dos Estados Unidos. E a sociedade americana foi transformada por meio das políticas de cotas. Eu entendo que esse mecanismo é fundamental para você quebrar o status quo. Esperar pela transformação orgânica numa sociedade como a nossa, que tem um histórico de desigualdade muito marcante, seja em relação às questões de gênero, seja em relação às questões de raça, é perpetuar uma desigualdade. Então a gente precisa das políticas.

Nós não precisamos disso na Aasp porque é um ambiente menor e o consenso ali se formou, um compromisso da gestão com a implementação da paridade das mulheres, e agora nós temos um compromisso também com a questão racial. Mas em estruturas maiores, mais rígidas, é fundamental ter uma política de cotas, ainda que seja por um determinado período.

ConJur — Qual é o papel que a Aasp tem de desempenhar nos dias de hoje? O que ela tem de oferecer aos seus associados?
Viviane Girardi — Na verdade, a Aasp tem um papel fundamental. Eu acho que a pandemia reforçou a necessidade do associativismo e a necessidade de os advogados terem uma associação que os represente também.

A Aasp tem duas características muito marcantes. Uma é que ela nasce já com a finalidade de ser uma grande advogada dos advogados, de fazer uma interlocução com os tribunais e com os demais órgãos de poder, sempre no sentido de retirar os obstáculos que atrapalham o exercício da advocacia.

A segunda é ter um diálogo, mais um enfrentamento, na verdade, com os tribunais quando isso se faz necessário, sempre no sentido de proteger o exercício da advocacia. Quando existem os abusos, ou os entraves para esse exercício, a Aasp intervém tentando minimizar esses obstáculos.

Por outro lado, a Aasp também oferece uma gama enorme de produtos que têm a ver com o dia a dia dos escritórios, que viabilizam o exercício da advocacia ao facilitar a gestão do escritório. Oferecemos um gerenciador de processos sem nenhum custo adicional, um banco de jurisprudência, um departamento cultural que produz cursos de A a Z, entre outros.

Então a Aasp tem, ao mesmo tempo, essa presença forte na defesa da advocacia como profissão e essa gama de produtos, além de uma estrutura física para onde o advogado pode ir, fazer reuniões com os seus clientes, ter ali o seu escritório, um ponto de apoio com toda a estrutura física para exercitar a profissão. Na Aasp o associado sabe que não está sozinho, ela dá essa sensação de pertencimento.

ConJur — Como anda a relação entre a Aasp e a OAB? Como você pretende conduzir o relacionamento entre as instituições?
Viviane Girardi — A Aasp sempre foi uma casa aberta ao diálogo e aberta à OAB. Nós sempre tivemos uma relação institucional muito boa com a OAB e com todos os demais institutos. A OAB é, naturalmente, o órgão de representação da categoria e em diversos momentos temos atuação conjunta. Em outros, cada uma tem seu espaço. A Aasp tem a natureza de ser uma casa de associação voluntária e de prestar serviços com excelência, ao longo dos nossos 77 anos a gente se consagrou nesse sentido. Então, o relacionamento entre a Aasp e a OAB sempre foi cordial, sempre foi aberto, sempre tivemos atuação, quando necessário, em conjunto, mas com cada uma mantendo a sua independência e o seu modo de ser.

ConJur — Como será a advocacia no pós-Covid-19? Quais serão as marcas da pandemia que não vão desaparecer quando ela finalmente desaparecer?
Viviane Girardi — A pandemia nos mostrou, primeiro, uma necessidade de a gente estar associado. Isso para mim foi uma coisa muito marcante. A relevância da associação tem sido muito presente porque ela absorveu o anseio e as dificuldades da advocacia e fez interferências importantes, atendemos a muitas reivindicações dos associados.

Outra cosa: a pandemia nos mostrou que, muitas vezes, estruturas físicas muito grandes não se fazem necessárias e que é possível o processo virtual. Mas é claro que no pós-pandemia a gente vai voltar a ter presença marcante no fórum porque ainda é fundamental haver a presença física. Entendo que ainda há atos que a gente não pode efetuar por meio do processo virtual.

ConJur — Houve, então, ganhos e perdas com crise da Covid-19?
V
iviane Girardi — Sim. Um lado positivo é que o advogado agora tem maior facilidade para fazer sustentação oral em tribunais, coisa que antes era mais complicado, até pelos custos com os deslocamentos. Por meio das videoconferências, isso ficou facilitado. Por outro lado, o que a pandemia trouxe de ruim foi ter deixado o advogado muito longe do fórum e desse contato com o dia a dia do Judiciário. Faz parte da advocacia essa presença. Por isso, acredito que no pós-pandemia a nossa atividade será mista: um pouco presencial, um pouco virtual. E nesse aspecto a Aasp teve também um papel relevante, pois os nossos cursos, que antes eram muito localizados aqui no estado de São Paulo, hoje chegam ao Brasil todo, e a Aasp tem associados no Brasil todo. A gente já promovia alguns cursos pela internet, mas isso ficou muito mais intensificado, e esse é um comportamento que veio para ficar.

Outra coisa: as estruturas de trabalho estão sendo transformadas, o que vai resultar numa redução de custos para os advogados, já que a pessoa não precisa mais ter uma estrutura física. O advogado foi forçado ao uso da tecnologia e isso é um fator que pode ser importante porque traz uma oportunidade maior com a linguagem virtual, com o mundo virtual, e também com esses novos mercados que podem surgir no mundo tecnológico.

ConJur — Desde que você começou a atuar na advocacia, esse momento atual é o mais dramático, é o mais difícil para os advogados no exercício da profissão?
Viviane Girardi — Acredito que todo momento tem o seu drama, se a gente for usar essa expressão. Eu advogo há 30 anos e a profissão está passando por uma transformação gigantesca. Se você imaginar que nós temos cerca de 1,2 mil faculdades de Direito, a gente já tem aí um indicador de como isso impacta o exercício da profissão. Temos um contingente enorme de advogados e nem todas essas faculdades entregam aquilo que oferecem, no sentido da qualidade do ensino. Outro problema é que infelizmente as cadeiras de Ética não são muito valorizadas. Então, muitas vezes o aluno, até pela imaturidade, pela inexperiência, acha que esse é um assunto de menor importância na formação dele e depois isso, muitas vezes, surge uma deformidade no mercado de trabalho.

Outro problema sério é que atualmente a advocacia vem sofrendo um enfrentamento muito duro. O que o cidadão precisa entender é que, quando a gente está na defesa das prerrogativas do advogado, na defesa das garantias que são dadas ao exercício da advocacia, a gente está, na verdade, na defesa do próprio cidadão, do jurisdicionado. Então a gente vive, sim, um momento mais difícil em relação a essa percepção que a sociedade tem da advocacia, muito em função do histórico do nosso país.

Mas a gente não pode deixar de considerar que a advocacia é um elo fundamental no sistema de Justiça. Sem uma advocacia fortalecida e respeitada, o aparato judicial como um todo se perde, corre o risco de se tornar ineficiente, ineficaz. Porque é a advocacia que leva as demandas até o Poder Judiciário. Então, uma advocacia forte, uma advocacia respeitada é fundamental para a gente garantir esse equilíbrio.

ConJur — Sobre esse enfrentamento que você mencionou, não é possível ignorar os ataques à advocacia feitos por membros do Ministério Público e do próprio Judiciário na autodenominada “força-tarefa da lava jato”. O que a sua entidade pode fazer em defesa da categoria em um momento tão delicado?
Viviane Girardi — A Aasp se manifesta junto aos poderes sempre que sente que a advocacia está sendo atacada. Então nós temos uma interlocução institucional com as demais entidades e somamos forças com elas nessa defesa, seja por meio de manifestos, seja por notas públicas ou até por meio da atuação da casa quando isso se faz necessário.

ConJur — Falando nisso, a advocacia precisa ter uma presença mais forte no Congresso Nacional?
Viviane Girardi — Na verdade, as leis que garantem a advocacia, o exercício da advocacia já estão postas. A gente não precisa de novas leis. O que a gente precisa é do cumprimento e da garantia dessas leis que já existem. A Aasp é extremamente atenta a isso, a qualquer projeto de lei que venha a, digamos assim, ferir essas prerrogativas, essas garantias. A Aasp faz os seus manifestos no sentido de apontar as deficiências técnicas, por exemplo, de legislações que possam ter esse viés. Além disso, se há alguma legislação em debate nos tribunais, a Aasp pode entrar como amicus curiae, sempre em defesa da classe dos advogados. Você não consegue imaginar que um Estado que não tenha uma advocacia forte e as prerrogativas garantidas seja um Estado saudável. Uma democracia madura e exercida realmente precisa disso, de um Poder Judiciário independente, de uma advocacia forte e de uma imprensa independente.

ConJur — Que tipo de marca ou legado você deseja deixar na Aasp no momento em que sair da presidência da entidade?
Viviane Girardi — Essa é uma boa pergunta. Eu acho que a marca que desejo deixar é a da impessoalidade. Mesmo que haja esse assunto de termos uma primeira mulher presidente, faz parte da filosofia da Aasp a impessoalidade da gestão. E a ideia de continuidade daquilo que vem sendo feito ao longo desses 77 anos da associação, que é manter a Aasp como uma casa que acolhe o advogado, uma casa que viabiliza que a advocacia possa ser exercida e uma casa que esteja aberta ao diálogo, seja com o associado, seja com as outras instituições. Eu acho que se puder fechar o mandato com algumas marcas, seriam essas.

Outra coisa importante que espero deixar é um legado de conhecimento, de aperfeiçoamento para o associado. No sentido de que o associado tenha consciência da importância que hoje o aperfeiçoamento profissional tem para a nossa profissão. Esse também seria um dos legados que eu gostaria de deixar.


Fonte: ConJur