Redação

O Estado não precisa ser mínimo, a desigualdade social está travando a economia, a mulher é dona do seu próprio corpo. Aos 62 anos, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país, está de olho nos temas sociais. E diz que, no polarizado espectro político brasileiro, sua posição é de esquerda.

“Para o Brasil, as propostas que eu tenho feito, os estudos que eu tenho desenvolvido, me colocam à esquerda. Mas uma esquerda para valer, não é uma esquerda que fica dando dinheiro para rico”, afirma, em entrevista concedida à BBC News Brasil em seu escritório em São Paulo. “É preciso falar em desigualdade de gênero, de raça, em homofobia, em tudo aquilo que faz a gente viver em um lugar melhor”.

BOLSA EMPRESÁRIO – Fraga diz que apenas está se dedicando mais à agenda de combate a privilégios que sempre fez parte de seus discursos, como em 2014, quando, coordenando a área econômica da campanha de Aécio Neves pelo PSDB, Fraga criticava o chamado “bolsa empresário”, apelido dado pela oposição a medidas de proteção, subsídio e desoneração voltadas para empresas durante os governos petistas. “Hoje em dia ficou muito claro que tem muita coisa que poderia ajudar [a combater] a desigualdade que também ajudaria no crescimento [da economia]’.

Apesar da grande simpatia que tem à agenda econômica comandada pelo colega liberal, o economista e ministro da Economia, Paulo Guedes, Fraga é bastante crítico em relação à postura do governo em outras áreas que nem sempre são percebidas como importantes para a economia, mas que, na visão dele, são.

A economia começa a dar sinais de retomada, mas o investimento, que é o motor principal, está em níveis bem baixos. O que está faltando, na sua avaliação, para o investimento voltar a crescer?
Essa pergunta é fundamental, saber se o movimento, que é uma recuperação típica do pós-recessão vai se transformar num crescimento mais sustentado. Há um contraste realmente entre uma certa euforia dos mercados, que já vem do governo anterior, mas que continuou, e um comportamento muito tímido, de fato, do investimento. O investimento público está em níveis mínimos históricos. Acho que isso espelha a situação ainda muito precária do Estado em termos fiscais.

O senhor vem, de um ano para cá, falando bastante de desigualdade. E tem uma corrente que defende que o importante é combater a pobreza, e não a desigualdade. E o senhor tem falado muito, inclusive, que a desigualdade trava a nossa economia. O senhor podia explicar como a desigualdade trava a nossa economia, na sua visão?
Eu falei um pouquinho sobre isso e é verdade. A minha “tribo”, isso é, os economistas mais liberais, historicamente focou mais na pobreza. Mas acontece que, hoje em dia ficou muito claro que tem muita coisa acontecendo que contribui para essa desigualdade ainda enorme que nós temos, embora ela tenha caído algo ao longo dos anos, muita coisa que poderia ajudar na desigualdade também ajudaria no crescimento.

Quando o senhor fala em desigualdade, está falando em renda e em oportunidade?
Renda e oportunidade, com certeza. Mas, além disso, é preciso falar em desigualdade de gênero, de raça, em homofobia, em tudo aquilo que faz a gente viver em um lugar melhor. É disso que a gente está falando. O tema de gênero casa com a questão da pré-escola, a pré-escola é uma unanimidade. Como? Como construir alguma coisa que funcione? Adianta fazer só a pré-escola? Não, não adianta nada gastar um zin bilhão na pré-escola e depois para a criança ir parar em uma escola primária que vai desperdiçar todo o investimento que foi feito. Então falta uma grande estratégia que aborde essas questões, e que tem tudo a ver com desigualdade. Tudo, tudo, tudo a ver.

A desigualdade é mais associada a uma agenda de esquerda. O que mudou para o senhor falar mais disso de um tempo para cá e o que o senhor acha dessa dicotomia, dessa divisão?
Eu, no passado, falava.

É que o senhor está com mais foco nisso.
Eu tenho uma visão, é difícil rotular as pessoas, mas eu acho que eu sou um liberal progressista. Acho que o Estado tem um papel, não acredito em Estado mínimo, ou pequeno. Acho que o Estado tem que ser um Estado que possa fazer certas coisas para toda essa trajetória de redução das desigualdades de fato acontecer, se materializar. Agora, em determinados momentos, o que se fala é contrastado com o que se tem no poder. Eu fazia essa crítica na época do PT usando essa expressão, que acho que é do Gustavo Franco, originalmente, brilhante, do “bolsa empresário”. Eu falava isso desde lá de atrás.

Sobre privilégios?
Qual o sentido que tem ficar dando moleza para quem não precisa, quando o país precisa tanto do outro lado? Precisa investir no social de fato, investimento público e privado. Então é uma questão de referencial, é muito difícil dizer: a minha posição para o país A, B, C ou D vai ser sempre igual. Alguns países já são muito mais iguais em todas as dimensões do termo, outros não. Nós somos extremamente desiguais. Eu não acredito em um modelo que nem existe mais no mundo, modelo comunista, com igualdade absoluta, ninguém acredita nisso. Mas o que nós temos aqui é muito, muito fora de qualquer razoabilidade. Então é nesse sentido.

São posições de esquerda?
As propostas que eu tenho feito, os estudos que eu tenho desenvolvido, me colocam à esquerda. Mas uma esquerda para valer, não é uma esquerda que fica dando dinheiro para rico. Mas não é uma esquerda radical, eu não me considero um Piketty, eu não acredito em imposto de renda de 70%. Acho que isso não funciona na prática, acho que nem é certo porque desestimula muito e é pouco viável na prática. Mas você ter aqui mecanismos que permitem a uma pessoa que ganha até R$ 4,8 milhões por ano, R$ 400 mil por mês, pagar 5% [de imposto] é uma desfaçatez completa. Então a gente tem que acabar com isso. É difícil entrar em um debate mais profundo sobre política pública, política social, enquanto se convive com essas aberrações.

Quando o senhor fala de prioridade para combater a desigualdade, que medidas o senhor defenderia que deviam estar na nossa prioridade?
Seria o básico: educação pública de qualidade com alguma administração privada inclusive, pode ser. Saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, políticas urbanas de qualidade. Isso é um oceano de oportunidades para se investir, crescer mais e ser menos desigual. Esse é o jogo. Da onde vem o dinheiro? Essa é outra pergunta. Há três grandes blocos de gasto que precisam ser revistos. Um deles é esse dos subsídios indevidos, tem a ver com desonerações, vantagens tributárias indevidas, e outros. Seria um terço do espaço para arrumar dinheiro para investir no social. O segundo bloco é a Previdência. O governo fez uma reforma, uma boa reforma, acho que dá para dobrar o resultado numa próxima reforma que deveria ocorrer nos próximos cinco a dez anos. Um excelente avanço, a reforma em si do ponto de vista social é ok, mas ela geraria recurso para fazer muita coisa boa no social do outro lado, se ela fosse um pouco maior. E o terceiro bloco seria uma reforma do Estado. Aí teria um objetivo duplo: primeiro o de fazer o Estado funcionar melhor. Primeiro teria que ter um Estado onde as pessoas sejam avaliadas, e onde isso tenha peso.

É algo parecido com a reforma administrativa do governo?
Sim. Mas eu estou focando em uma coisa mais simples que eu, imagino, vai fazer parte dessa reforma que o governo está desenvolvendo. Eu tenho focado, com colegas, em aspectos mais básicos que são: avaliar o funcionalismo público, de uma forma justa, onde não haja espaço para favoritismo, de uma forma que o Estado funcione melhor. Então as pessoas, para serem promovidas, vão ter que ter um histórico de RH e vão ser promovidas pela sua competência, pela responsabilidade que assumem etc. Depois tem o lado mais negativo. Quem for recorrentemente ruim não vai ter promoção, eventualmente pode até ser demitido. Eu acho que daí não sai um ajuste fiscal a curto prazo, isso não existe, vai fazer um grande expurgo, é mais demorado. Mas nós temos um custo do funcionalismo no Brasil que é totalmente fora da curva. O gasto com funcionalismo, somado de funcionalismo e Previdência no Brasil, chega a 80% do total do gasto público, olhando o governo como um todo. No mundo todo está entre 50% e 60%, aqui é muito maior. Então aí é que temos espaço para, em alguns anos — acho que levaria entre cinco a dez anos para ter todo o efeito — fazer uma revolução aqui. Ter dinheiro para gastar mais no social, para investir mais.

Na recessão, muitas pessoas entraram na pobreza, a gente tem mais de 13 milhões de pessoas que vivem com menos de R$ 145 por mês. E na época, em 2017, o Banco Mundial e economistas liberais, como o Ricardo Paes de Barros, defendiam que se o país quisesse passar a recessão protegendo os pobres poderia ter feito uma opção em criar um colchão social, aumentar o Bolsa Família para que essas pessoas não fossem tão desprotegidas. E agora mesmo a gente vê o Bolsa Família voltou a ter uma fila de 500 mil pessoas. Daria para proteger essas pessoas mesmo com dificuldades fiscais?
Isso é um sinal de uma certa falência do Estado.

O senhor vê erros?
O que eu vejo é um erro sim, mas é um erro histórico que nos levou a essa situação de ter um gasto público alto para um país de renda média e mal direcionado nesses 80% que eu estou falando. Uma vez que se chegou a esse ponto, isso cria uma certa inércia, isso aí é uma espécie de catraca, não é fácil reverter. Vai ser um processo. No caso da Previdência, nós brasileiros temos discutido esse assunto há mais de 20 anos. Não dá para esperar mais 20 anos para resolver o resto. Mas também não dá para esperar da noite para o dia. Vamos ver agora a reforma administrativa que é que sai, nós temos tido a sorte de ter um Congresso que vive um momento de foco em muitas questões importantes.


Fonte: BC News Brasil, por Ligia Guimarães