Por Elio Gaspari –
Aqui e ali reverberam sinais de desconforto de alguns militares com as investigações da Polícia Federal para desvendar a trama golpista de Bolsonaro. Chefes militares depondo por horas na Polícia Federal bem como vazamentos irregulares podem explicar a contrariedade, mas não a justificam.
Os tribunais militares de todos os países vivem debaixo de uma desconfiança sintetizada pelo presidente francês Georges Clemenceau (1841-1929): “A Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar está para a música”.
PESADA MOCHILA – A Justiça Militar brasileira carrega uma pesada mochila. Ela acreditou que Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho suicidaram-se, que Rubens Paiva fugiu e que a dupla do DOI nada teve a ver com a explosão da bomba do Riocentro no colo do sargento.
Na outra ponta, o Superior Tribunal Militar aliviou para dois capitães: Jair Bolsonaro, que rabiscou um projeto para detonar a adutora do Guandu, e Ailton Guimarães Jorge, que arrepiava cargas de contrabandistas no Rio de Janeiro.
Em tempo: o capitão Guimarães, posteriormente alistado na artilharia do jogo do bicho, nunca foi acusado de contrabando, mas de confiscar as muambas.
SAQUEOU A CARGA – Na madrugada de 14 de maio de 1971, com uma tropa da 1ª Companhia do 2º Batalhão da Polícia do Exército, ele saqueou uma casa do subúrbio de Campo Grande onde se guardava uma carga de milhares de calças jeans, caixas de uísque e perfumes. Os contrabandistas eram policiais civis e militares. Depois do arrepio, ele teria tentado vender a carga de calças jeans e perfumes à própria vítima.
Enquanto circulam as notícias de desconfortos, no Superior Tribunal Militar trata-se do caso da patrulha do Exército que matou dois cidadãos em 2019, numa cena em que foram disparados 257 tiros e circula a tese da legítima defesa.
MAUS ESPÍRITOS – Toda corporação tem um espírito de corpo. A questão está em saber para onde ele aponta. Há bons e maus espíritos. Muitos militares esquecem-se de que a própria corporação deu exemplos de grandeza e justiça. Tome-se o caso do general Peri Bevilacqua.
Em 1961, durante a crise da renúncia de Jânio Quadros, ele comandava a 3ª Divisão de Infantaria e foi decisivo para permitir a posse de João Goulart. Quando Jango dobrou à esquerda, apoiado pelos “Generais do Povo”, Peri desafiou o governo e perdeu o comando da tropa de São Paulo.
Deposto Goulart, Peri foi para a chefia do Estado-Maior das Forças Armadas. Ele dizia o que pensava, passou a incomodar o governo e foi mandado para o Superior Tribunal Militar. Como votava a favor da libertação de presos, continuou incomodando. Um de seus votos derrubou uma denúncia contra o professor Fernando Henrique Cardoso. Pior: em 1966 ele defendeu uma anistia.
CONTRA GEISEL – Em 1967, Peri aparteou um voto de outro ministro, o tempo fechou e os dois chegaram a levantar-se. O outro chamava-se Ernesto Geisel.
Nesses dias, Peri comentou em casa: “Estão preparando a sementeira do ódio”.
Em dezembro de 1968 veio o Ato Institucional nº 5 e Peri Bevilacqua foi demitido do STM. Pura malvadeza, pois faltavam poucos meses para que caísse na compulsória. Foram além, confiscando-lhe as condecorações militares que havia recebido. Era um sinal para outros generais prestigiosos que ousassem sair da linha.
Peri filiou-se ao MDB e passou a defender a anistia. Morreu em 1990, aos 91 anos.
Em 2002 a família do general foi informada de que, caso requeresse, as condecorações seriam devolvidas. Seu filho, um coronel da reserva, recusou-se a pedir.
Meses depois, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto que restabelecia as condecorações de Peri Bevilaqua.
ELIO GASPARI é jornalista e colunista da Folha e O Globo.
Publicado inicialmente na Folha de SP / Enviado por Roberto Antunes – Campinas (SP). Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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