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Memórias: minhas e dos outros – por Geraldo Pereira
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Memórias: minhas e dos outros – por Geraldo Pereira

Por Geraldo Pereira

Acredito possuir hoje alguns milhares de livros, uns oito mil adquiridos, a maioria deles, nos sebos de quase todo o Brasil, nas minhas andanças por este País continental. O início desse salutar hábito foi na minha cidade do Recife em 1943. Dinheiro curto, curtíssimo, economizava até na passagem de bonde, viajando no ‘laré’ bonde de segunda classe, e, pechinchava com os pobres donos dos sebos, daquela época, para comprar uma brochura de Castro Alves Gonçalves dias, José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto, Lima Barreto, Humberto de Campos, Jorge Amado, e outros, lá se vai mais de sete décadas!

Barbosa Lima Sobrinho, Miguel Arraes, Ariano Suassuna e Geraldo Pereira nas saborosas tardes de tertúlias literárias. (Arquivo pessoal)

Apaixonei-me por todo tipo de leitura, Machado e Euclides, me fizeram varar as madrugadas. Depois foi a vez de Lima Barreto, Jorge Amado, Graciliano, Afonso Schmidt, Bandeira, José Lins do Rego; bem mais tarde entrei no campo das memórias, onde Humberto de Campos, o escritor mais lido do pais pontificou, e, estava em absoluto esquecimento, até que Assis Chateaubriand, através das edições Cruzeiro, após ocorrido 20 anos de sua morte, editou na década de 1950, o seu Diário Secreto, um sucesso tremendo. O escritor pernambucano Paulo Cavalcante, de saudosa memória é outro mestre no assunto.

Hoje tenho uma centena desses livros, são memórias, depoimentos, pedaços de vida de grandes e pequenos personagens da vida brasileira que desfilam, alguns nos surpreendendo, diante de certos episódios, deles saindo engradecidos, outros, pobres de tudo, ontem como hoje, sempre oportunistas e subservientes. Uma praga contaminando a dignidade humana.

Há pouco, debrucei-me sobre alguns desses livros, recolhi um pouco de cada um, e, reparto com os leitores da Tribuna da Imprensa Livre.

Comecemos com José Lins do Rego, filho da pequenina e hospitaleira Paraíba, terra de José Américo de Almeida, Augusto dos Anjos, do estimado casal Adeildo e Beta, do meu saudoso Amigo José Santa Cruz e, também, da admirável Maria Augusta Capistrano, marchando, no Rio de Janeiro, com entusiasmo para o seu centenário. De José Lins do Rego, no livro “Dias Idos e Vividos” recolho o seu primeiro encontro com Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios.

Portinari e seus amigos escritores: Graciliano Ramos, Pablo Neruda e Jorge Amado. Rio de Janeiro, 1952. (Museu Casa de Portinari)

O tabelião de Mata Grande nos havia dito: – “Os senhores vão encontrar em Palmeira dos Índios o homem que sabe mais mitologia em todo o Sertão. O prefeito nos apresentou: – “Este é professor Graciliano Ramos”.

“Professor de coisa nenhuma”, foi nos dizendo ele. E ficou para um canto da sala, encolhido, de olhos desconfiados, com um sorriso amargo na boca, enquanto o governador falava para correligionários. Quis provocá-lo, e tive medo da mitologia. Mas, aos poucos fui me chegando para o sertanejo quieto, de cara maliciosa. Falou-me uns artigos que havia lido com a minha assinatura, com tanta discrição no falar, com palavras tão sóbrias que me encantaram.

O homem que sabia mitologia, também entendia de Balzac, de Zola, de Flaubert, de literatura, como se vivesse disto. Soube que era comerciante, que tinha família grande, que era ateu, que estivera no Rio, que fizera sonetos, que sabia inglês, francês, que falava italiano.

Conheci assim o mestre Graciliano Ramos. Depois o comerciante fechou as portas pagando integralmente aos credores e seria o prefeito de sua cidade, faria relatórios ao conselho municipal, em língua e humor de grande escritor.

Começou aí a carreira deste mestre […]. Vieram os seus livros. O romance brasileiro, com ele, foi além daquilo a que tinha chegado […]. A língua de que ele se serve é um instrumento de fabulosa precisão. Não há nela um desgaste de peça, um parafuso frouxo. Tudo anda num ritmo perfeito […]. A grandeza do mestre Graciliano está nisto, em que sendo um homem de poucas palavras, é, na solidão de sua obra, um escritor de vida eterna.”

Continua com a palavra Zelins: numa crônica publicada em 1942, com o título “Música Carioca”.

“A música carioca já nos dera o grande Villa-Lobos. Vila é um filho do samba, dos choros, da magia das escolas do morro. Ele é mais do que tudo isto porque é um gênio, um criador que se sobrepõe ao povo pela força de competir com o povo. Mas a sua musica se enraíza no solo quente de Mangueira, da Favela, do Salgueiro.

Membros fundadores da Academia Brasileira de Música, julho de 1945, ano em que a ABM foi criada. De pé, da esquerda para a direita: Florêncio de Almeida Lima, Radamés Gnattali, Andrade Muricy, Eurico Nogueira França, Fructuoso Vianna, não-identificado, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, não-identificado, Lorenzo Fernandez, e não-identificado. Sentados, da esquerda para a direita: João Octaviano Gonçalves, ​João Batista Julião, Heitor Villa-Lobos, João Itiberê da Cunha, e Octavio Bevilacqua. Coleção de Aloysio de Alencar Pinto, doada ao IPB por Georges Mirault (Reprodução)

Outro grande é Noel Rosa. Este saiu de Vila Isabel. Lá embaixo estourara uma mina melódica das mais ricas que tivemos. Como nos pés de serra, a água que é Noel Rosa é límpida.

Sinhô foi outro, um veio rico que ainda nos delicia.

Noel Rosa foi, porém, o maior de todos. A música carioca chegou ao cantor popular dos subúrbios e foi mais alguma coisa que uma música de ocasião. É música de verdade, construída. O seu canto, a sua melodia é rica de personalidade. Sente-se nele a doçura do sofrer do malandro. Quando ele morreu cantaram As pastorinhas na missa de sétimo dia. A musica de Noel Rosa é em certos momentos grave, cheia de mais alguma coisa que do movimento e da alegria dos cordões. Ele chora de verdade. Quando cantou o seu subúrbio, fez como um poeta. Disse nesta ocasião que ‘ao som do samba dançavam até os arvoredos”.

A música carioca é assim como esta imagem de Noel Rosa. É música cálida, de penetração, de força viva. Faz a gente viver em intimidade com a terra e com a gente.”

De Josué Montello, no seu ‘Diário do Amanhecer’, Editora Nova Fronteira, na página 684, nos informa a vergonha a que foi submetido, o respeitável jurista, Hermes Lima, após ser aposentado pelo AI5, deixando o Supremo Tribunal bem mais pobre e acovardado.

“Na Academia, me mostrou o papel que lhe exigem agora para que continue a receber seus vencimentos de ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, aposentado discricionariamente por Ato Institucional da Revolução de 1964.

De seis em seis meses, ele tem de ir à Delegacia de Polícia de seu bairro, para que se lhe dê o atestado de que está vivo, sem isso não lhe pagam a aposentadoria.

A exigência além de humilhante, e grosseira, é cruel, é vil, no seu propósito de ferir uma alta figura da Justiça e da Cultura do País, como se não bastasse o arbítrio da medida que lhe arrancou a toga na plenitude do saber e da competência.

Ainda bem, que se é o governo que hoje se escarnece dele, amanhã o próprio ato se encarregara de se escarnecer do governo.”

Fechemos essas memórias, ainda com o mestre Graciliano Ramos

Seus sofrimentos sendo preso, em Alagoas, e remetido para o Recife, em plena ditadura de Getúlio Vargas, e do Recife para o Rio de Janeiro, num navio.

Em ‘Memórias do Cárcere’, Segundo Volume, 1953, Editora José Olímpio, Graciliano nos fala da sua chegada na Casa de Detenção, “Todo sujo, indaga de um outro preso: “Faz favor de me dizer onde posso arranjar um banho?” “Difícil”, respondeu. “Só amanhã. A esta hora o banheiro não se abre.” Convidou-me a entrar no seu cubículo, apresentou-se, Renato do Rêgo Barros, e apresentou o companheiro, Adolfo Barbosa, de ar doentio, feio, amável em excesso, o rosto deformado por terrível prognatismo. Pus a valise no chão, sentei-me a beira de uma cama: Será realmente impossível achar água? Estou imundo. Faz uma semana que não me lavo.

Renato cortou a dificuldade. A um canto, disfarçando a latrina, havia um guarda-vento. Colocou-me diante da pia, agarrou um caneco: Dispa-se. Nem me deu tempo de recusar. Minutos depois achava-me coberto de espuma e receber açoites líquidos em todo o corpo. Enxuguei-me com a toalhinha de rosto, encabulado por incomodar o solícito homem, que passava a borracha no chão molhado […] Naquele dia a comida veio muito ruim, de aspecto mais desagradável que o ordinário. No caixão, ao pé da grade, empilhavam-se os pratos – e o alimento se comprimia formando uma pasta onde se misturavam carne, peixe, arroz e batatas esmagadas. Entramos na fila, passo a passo nos avizinhamos dos faxinas ocupados na distribuição, recebemos a boia enjoativa e a sobremesa: uma laranja murcha, uma banana preta, meio podre.

Afastei-me, pegando a louça imunda, a sentir nos dedos grãos machucados e gordura, subi os degraus de ferro. Lá em cima iria repetir-se a dificuldade comum nas refeições. À falta de mesa ou cadeira, forrávamos a cama com jornais guardados para as tochas com que se queimavam percevejos. Evitávamos assim o contacto da coisa repugnante com as cobertas.”

Graciliano, nasceu em 27/10/1892, em Alagoas. Faleceu, no Rio de Janeiro, vítima de câncer, em 20/03/1953.

*Publicado em agosto de 2019/Tribuna da Imprensa Livre.

GERALDO PEREIRA é jornalista especializado em história política e sindical do Brasil, atuando por mais de 60 anos nos principais veículos de comunicação do país, ex-presidente do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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