Por Geraldo Pereira

Marques Rebelo foi o grande retratista da vida carioca, trilhando, sem dúvida alguma, o mesmo caminho daqueles a quem ele sucedeu: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Dele me aproximei no final da década de 40, uma paixão nos unia – o América – o conheci na sede do Clube, no bairro da Tijuca, na rua Campos Sales, 118,  título do livro em que ele retrata a história do nosso Clube.

De quando em quando, almoçava com o autor de ‘Marafa’- seu primeiro grande livro – surgido em 1935, recebendo logo dois prêmios e sendo saudado pela crítica.  Conversávamos sobre todos os assuntos, inclusive literários, naturalmente. Num desses ‘papos’ perguntei-lhe: Por que a Academia Brasileira de Letras, da qual ele era membro, não abria as suas portas para dois grandes intelectuais de prestigio, como Gilberto Freyre e Vinícius de Moraes? Respondeu-me rapidamente, com uma só palavra: “Nunca!”.

Fiquei perplexo com a resposta, não me deixando prosseguir com essa perplexidade, ele continuou incisivo, após o ‘nunca’, “Geraldo, você jamais verá na Academia um Gilberto Freyre. Quem é que quer conviver com um homem, com o qual tem que se medir as palavras para falar-lhe? Vinícius, com aquele copo de whisky, não casa com a Academia.

Já vai para mais de meio século, Gilberto e Vinícius estão do outro lado do mundo, e não entraram na ‘Casa de Machado de Assis’.

Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, de saudosa memória, era um intelectual na acepção da palavra, engajado na defesa das boas causas, intelectual participante, presidente da Academia Brasileira de Letras, e da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, também, foi decano de ambas. Era um homem simples. Ex-governador de Pernambuco, deputado em diversas legislaturas, era um homem educado, finíssimo, dava expediente diariamente na ‘ABI’, eu tinha pelo ex-governador da minha terra, uma profunda admiração, eu não, o Brasil inteiro, admiração que ele não pediu, conquistou-a, através de uma vida cheia de dignidade e coragem. Barbosa Lima Sobrinho, voz sempre altiva, voz que não se calou, diante do arbítrio militar de 64.

Época houve em que a carona no seu automóvel, quase todos os fins de tarde, me fez mais próximo de mestre Barbosa Lima, no seu gabinete da ‘ABI’, para as tertúlias literárias, que sempre estavam na ordem do dia e no final delas.

Assim como Luís Carlos Prestes e Heráclito Fontoura Sobral Pinto, mestre Barbosa Lima, possuía uma memória privilegiadíssima. Nas tertúlias literárias, o ponto alto era quando ele retirava do seu ‘baú’ fatos e episódios inesquecíveis, da História do Brasil, muitos vividos por ele próprio. Chamava-me a atenção, o seu bom humor, tinha umas ‘tiradas’ que me faziam rir, eu ria e notava que ele ficava satisfeito e prosseguia: “Geraldo, você conhece o poeta Jorge de Lima”, respondi-lhe de imediato: “É claro! ‘Essa Nega Fulô’, o imortalizou, ele é médico tem escritório aqui na Cinelândia”.

Mestre Barbosa me conta um episódio sobre Jorge de Lima. Ele foi vereador e presidente da Câmara de vereadores. Numa sessão tumultuada, com os vereadores exaltados, trocando ‘sopapos’ ele na Presidência, sentado e escrevia de cabeça baixa. Como as coisas continuavam com ameaças, agora de revólver, um vereador apontando a arma para o outro, um dos presentes foi correndo até a presidência da mesa e disse-lhe: “Presidente, o senhor não está vendo, pode sair tiros e mortes?” E o Jorge: “Aonde?”.

O poeta, presidente, estava com as vistas voltadas para o poema que estava sendo feito naquele instante, não podia perder a inspiração.

Quando do funeral do grande saudoso Alceu Amoroso Lima, ocorrido em agosto de 1983, o escritor e notável memorialista Pedro Nava, em pleno Cemitério de São João Batista, ergueu sua voz e disse: “Quem deve substituir Alceu, na Academia é Sobral Pinto, que não deve ser eleito e sim aclamado!”.

A Academia estava totalmente acovardada, escritores e jornalistas, sendo presos, surrados e torturados, e a Academia surda e muda. Não dava uma palavra, parecia que não estava acontecendo nada.

Procurei Sobral Pinto e disse-lhe: “Dr. Sobral, o Brasil precisa do senhor na Academia, o senhor vai fazer a Academia acordar, desse sono covarde, vai denunciar esses atos de arbítrio, pelo qual o senhor também passou”.

Toda tarde o presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, aguardava o seu motorista, sentado num banco, no jardim da ‘Casa de Machado de Assis’. De quando em quando eu passava por lá e batia um ‘papinho’ gostoso com ele. Digo isso ao Dr. Sobral e peço a sua autorização, para falar sobre o seu ingresso na Academia, com o presidente Austregésilo, Dr. Sobral me respondeu que não era escritor, não tinha obras literárias, mas ressaltou que Academia Francesa tinha a figura do ‘Expoente’ de sua Classe. “Mas, eu não sou expoente de minha classe, não sou expoente de coisa nenhuma”.

Despedi-me e disse: “Tá, depois falaremos!”. Dali vinte minutos (a banca de advocacia do Dr. Sobral ficava alguns quarteirões da Academia), estou diante do presidente Austregésilo, que como sempre, estava no mesmo lugar aguardando o seu motorista.  Orgulhoso e contente leio a matéria da Folha, sobre os funerais do Dr. Alceu, dou ênfase, às declarações do Pedro Nava, “Quem deve substituir Alceu, na Academia, é Sobral Pinto, que não deve ser eleito e sim aclamado”.

Falo-lhe da honra da Academia ter em seu seio, um homem como Sobral Pinto, com a sua cultura e a sua coragem. Ele ouviu, sem me prestar, mas prestando muita atenção, disse-me: “Você diz ao Dr. Sobral, se ele quiser entrar para Academia, terá que visitar os acadêmicos e pedir votos, como todos fazem”.

Retruquei: “Presidente Austregésilo, o senhor sabe, o Dr. Sobral não é homem de pedir nada a ninguém, é um homem de altíssima respeitabilidade, sua entrada para Academia, dignifica a ‘Casa de Machado de Assis’”.

Numa dessas tardes, de tertúlia com o mestre Barbosa Lima Sobrinho, lembro esse episódio, ele dá continuidade ao assunto e me diz que Gilberto Freyre queria entrar para Academia, mas fazia questão de ser aclamado. Seria uma grande aquisição à Casa. O que não era possível, e passou a me explicar porquê: “Monteiro Lobato, era o escritor de maior prestígio no Brasil e a Academia o convidou para ser seu membro, ele foi eleito por aclamação. A imprensa deu destaque e a posse dele foi marcada. Seria um grande acontecimento”, me diz o Dr. Barbosa. “Um dia antes da posse, ele passou um telegrama renunciando. Conta-se que o seu amigo o jornalista Júlio Mesquita Filho, teria aconselhado a renunciar, dizendo-lhe: ‘Você vai encontrar Getúlio Vargas, na Academia, o homem que te prendeu?’ Tanto Monteiro Lobato, como Júlio Mesquita Filho, foram presos na ditadura de Getúlio, o jornalista foi, inclusive,  exilado. Por esse motivo a Academia  não mais permitiu  a eleição por aclamação”.


GERALDO PEREIRA – Jornalista especializado em história política e sindical do Brasil, atuando por mais de 60 anos nos principais veículos de comunicação do país, ex-presidente do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.