Por Ana Carolina Bartolamei Ramos –
Um Sistema De Justiça Em Que As Casas Podem Ser Invadidas, Os Corpos Agredidos E Mortos, As Crianças Separadas Das Famílias, Adolescentes Apreendidos Nas Ruas, É Um Sistema De Violações.
Viver o sistema de justiça penal hoje, a depender de sua classe social, da cor de sua pele, da sua orientação sexual e da sua identidade de gênero, é viver na barbárie. Há uma Constituição Federal, existem leis e somos (para quem?) um Estado Democrático de Direito, porém há tempos que o que vivenciamos é a conivência dos seus operadores com as violações.
Como chegamos até aqui? Em que momento trocamos o direito pela moral, trocamos a justiça pela vingança, deixamos de lembrar que a regra do jogo está posta para ser seguida e que não deveria existir a possibilidade de flexibilização do que é mais essencial, como as garantias constitucionais?
Precisamos começar entendendo que somos uma sociedade que se baseia no medo como afeto central (Safatle), uma construção discursiva que não se deu ao acaso, já que faz com que seja socialmente aceito um Estado que opera numa lógica punitivista.
O medo é uma emoção poderosa, obviamente que movidos por ele somos capazes de escolhas cruéis, para defender nossos corpos, nossas propriedades. Isso é humano e é tão humano que justamente por isso foi preciso criar regras e criar um Estado para que pudéssemos viver em sociedade sem que nos aniquilássemos.
É também desse medo que o modelo de gestão econômica adotado no país, o neoliberalismo, se utiliza para impor a sua governabilidade da economia e do capital, tornando-se uma racionalidade determinante e gestora dos modos de vida.
No Brasil contemporâneo, a articulação entre o neoliberalismo, como exercício de poder, e a lógica punitivista tem no sistema penal o espaço para sua materialização. É preciso um Estado Penal forte para que o sistema de mercado seja capaz de sustentar seus propósitos, já que nisso está implicada a gestão dos corpos indesejáveis.
Existem várias conexões a serem pensadas em relação ao sistema de justiça penal brasileiro, o tema é complexo, mas talvez seja preciso entender os afetos que envolvem a sua operação violenta e violadora atual, por isso o medo e o punitivismo precisam ser destacados.
O péssimo exemplo da Operação Lava Jato somente deu mais respaldo para que essa lógica de desvirtuamento do direito se operasse, como se em algumas situações fosse possível a violação à norma para obtenção de uma suposta justiça, que sempre foi e sempre será vingança e manipulação popular. Afinal, o que seguimos vendo é o canhão de violações constitucionais e legais sendo direcionado especialmente às pessoas pobres, pretas, trans, como se para seus corpos, suas vidas, suas comunidades, a norma fosse outra.
Um sistema de justiça em que as casas podem ser invadidas, os corpos agredidos e mortos, as crianças separadas das famílias, adolescentes apreendidos nas ruas, é um sistema de violações. E é pela manipulação do medo, inclusive de nós, vou chamar aqui de operadores do direito, que a barbárie, o horror, segue se perpetuando.
Nos acostumamos, amortecidos, com os pés descalços algemados, as feridas abertas, as casas e os corpos violados, os cabelos raspados, a fome e a sede, as masmorras.
E a manipulação social pelo medo, como meio de controle, com a execução cada vez mais constante de medidas de exceção agenciadas pelo sistema de justiça tem como aliado os meios de comunicação social. Era preciso que a sociedade compactuasse e, mais do que isso, pelo que temos assistido nos últimos anos, que almejasse o atual Estado de Exceção.
Tratar de forma superficial e sensacionalista a violência, com a responsabilização de grupos marginalizados, segregados e abandonados pelo Estado, resultou na validação social para suas manutenções à margem, mortos ou encarcerados.
Nessa medida que se construiu a suspeita daquele que sempre é suspeito, desde que nasceu, porque o olhar social sobre esse outro de corpo preto, periférico e/ou que representa ruptura com padrões de gênero e sexualidade, já se dá sob a lente do medo e, portanto, da aniquilação.
E é por isso que é necessário e urgente sair do amortecimento e da compactuação com um sistema de justiça penal que opera na lógica da desumanização de uma parcela da população, com uma atuação sem ressalvas na garantia efetivação de seus direitos.
Seguir no gerenciamento de inconstitucionalidades ao empilhar corpos em cárceres imundos, apertados e úmidos, como se não nos competisse assegurar justamente o contrário, não é mais possível, se quisermos viver na sociedade que nossa Constituição previu.
Se insistirmos na recusa em nomear o que se está vivenciando na sociedade brasileira contemporânea, mais corpos e mais órfãos precisarão ser contabilizados nesta fatura neoliberal. É preciso que sejamos responsáveis e o preço de se responsabilizar é pequeno, se comparado à destruição que se opera.
Forjados como sociedade por uma governabilidade neoliberal e por isso punitivista, com a mobilização do medo como afeto central, imperativa se faz a ruptura e emancipação dessa racionalidade que nos assujeita, até porque esse pacto neoliberal só tem cobrado o preço de uma carne e é preciso que não sejamos mais responsáveis por isso.
Mais uma vez o medo, antes de encerrar, medo é sim um afeto poderoso. Temos medo e isso precisa ser considerado para que seja possível subverter a lógica punitivista que nos orienta na atuação do sistema de justiça penal. Mas coragem é o que nos resta para reconstruir os laços sociais fora dessa lógica de medo e punição.
Acabar sem perspectiva não é uma opção, é preciso ter futuro.
ANA CAROLINA BARTOLAMEI RAMOS – Juíza de Direito Substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Coordenadora Adjunta do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC – do Fórum Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Supervisora da Central de Medidas Socialmente Úteis – CEMSU do Fórum Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Colaboradora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/TJPR).
Publicado inicialmente no Plural. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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