Por Kakay –
“É fácil trocar as palavras, difícil é interpretar os silêncios. É fácil caminhar lado a lado, difícil é saber como se encontrar.” (Fernando Pessoa)
Estamos a 1 mês de poder respirar ares mais democráticos no Brasil. Em um país civilizado, a alternância de poder e de modelo de governança, em regra, oxigena a sociedade. Também permite que valores diversos sejam debatidos com o fortalecimento da democracia e das relações institucionais entre os diferentes.
Ninguém, ou nenhum grupo político, deve se sentir dono da verdade ou o detentor único da virtude. Em geral, quem se apresenta assim acaba se mostrando moralista e intransigente. Como profetizou Nelson Rodrigues:
“Por trás de todo paladino da moral, vive um canalha”.
A convivência com o contrário, o respeito às ideias diferentes, a humildade de escutar e a grandeza de olhar com o olhar do outro propiciam a oportunidade do fortalecimento das bases civilizatórias que sustentam uma sociedade democrática. Isso, repito, em um país civilizado.
Da mesma maneira que é importante todos nós nos posicionarmos de forma aberta, respeitosa e solidária no embate com pensamentos de matizes diferentes, também é fundamental que saibamos o valor do enfrentamento da postura deliberada dos que têm o ódio e a violência como forma de ação. Seja na vida pessoal, seja na atitude como cidadão sujeito de direitos e de responsabilidades numa sociedade, rechaçar o comportamento abusivo é um direito e até uma obrigação. Se a política de ódio se impõe, as relações mudam completamente, pois o respeito, próprio e entre as pessoas, deixa de ser a base da discussão civilizatória. Uma nação dirigida com obsessão destrutiva não resiste e tende a uma corrosão moral e ética, sucumbindo. Sem uma base humanista, qualquer sociedade é levada a ser bárbara, vulgar e sem limites.
Nos países presidencialistas, a força, até simbólica, do presidente da República é muito grande. Há uma tendência natural de alguns grupos de seguirem esse líder como exemplo. Em um mundo midiático, no qual a imagem e o uso maciço da informação chegam a criar uma realidade paralela, a irresponsabilidade do governante pode levar a movimentos que mais se assemelham a uma seita do que a uma sociedade com capacidade de discernimento. É exatamente essa a proposta do governo que agoniza em praça pública.
É necessário ter a acuidade de examinar como esse grupo chegou ao governo e qual foi o modus operandi na manutenção do poder durante os últimos 4 anos. Até porque é a mesma estratégia que usarão para tentar retomá-lo em 2026. A deliberada política de terra arrasada com o desmantelamento das bases civilizatórias em todas as áreas não foi por acaso.
Para uma sociedade ser movida e sustentada pelo ódio e pela vulgaridade, é necessário criar e fomentar cidadãos acríticos, sem capacidade de discernimento e de discussão. As cenas patéticas dos bolsonaristas marchando de maneira hilária e pedindo intervenção militar, bem como a ajuda dos extraterrestres demonstram que o propósito de idiotização teve um êxito impressionante. É esse um dos objetivos desse grupo para a manutenção do poder.
Joinville, SC, milícias bolsonaristas de extrema direita marcham tais quais as SS nazistas. Da pra acreditar ? pic.twitter.com/pjFY7nQabw
— Frota 77🇧🇷💙 (@77_frota) November 9, 2022
Enquanto o governo Lula criou 34 universidades, priorizou o sistema de cotas, deu vez e voz aos marginalizados, começou, ainda que timidamente, a resgatar a dívida histórica com os negros, investiu na educação e em políticas sociais tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014, o governo Bolsonaro fez uma guinada inversa na condução do país. Durante o período na Presidência, investiu em violência, fomentou o ódio, fez a fome voltar corroendo a dignidade de, pelo menos, 33 milhões de brasileiros, destruiu a fauna e flora e dividiu o país.
Porém, nada disso é por acaso. A estratégia de manutenção do poder passa pela manipulação e pelo fortalecimento de uma política do medo, do armamento indiscriminado e da destruição do pensamento crítico. Nenhuma universidade foi criada, pois quem pensa costuma questionar. É sintomático que uma das “acusações” feitas pelos fascistas durante a campanha era a de que, “se o Lula ganhar, ele vai fechar clubes de tiros e colocar bibliotecas no lugar”. Espantoso que esse tipo de gente pense que nos agride ao sugerir que preferimos o livro às armas!
Na realidade, cada um vê a sociedade conforme a sua visão de mundo. Lembrando-nos de Ariano Suassuna, recitando Leandro Gomes de Barros:
“Por que existe uns felizes e outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito, moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto”.
Por isso, é necessário que façamos uma grande discussão entre os que têm compromisso com o resgate de um país que está em frangalhos. Repito: não podemos incorrer no mesmo erro que o Brasil cometeu quando da redemocratização. A opção por não punir os assassinos e os torturadores criou as condições para manter vivo no esgoto da história esses seres escatológicos que agora mostram suas garras e dentes. E que teimam em sugar qualquer hipótese civilizatória, optando por manter uma sociedade sob o jugo do ódio e da força bruta. A essência do grupo bolsonarista é de uma obtusidade que qualquer autor de ficção teria dificuldade de criar.
Pareceria exagero se fôssemos analisar para descrever o comportamento dos que envergonham o Brasil frente ao mundo civilizado com bizarrices e atitudes teratológicas. São como hienas e abutres, vivem em bandos, disseminando o ódio e alimentando-se da violência. E devem ser responsabilizados pelo que fazem e pregam, sob pena de sermos cúmplices da destruição de uma nação com a volta da barbárie institucionalizada a partir das próximas eleições. O enfrentamento dos crimes e dos excessos –dentro do regramento constitucional e com a punição dos responsáveis– é o mínimo que se espera para voltarmos a viver em uma sociedade humana, mais justa, mais solidária e igual.
É urgente aprofundar na discussão da responsabilidade do presidente da República, e do seu grupo mais próximo, pela implantação dessa política de ódio no país. Especialmente na deliberada posição de pregar a ruptura institucional e a violência física entre os brasileiros. Usando o natural prestígio do cargo, ele instigou, induziu, propagou e instituiu o ódio e a violência como meios de ação política. Tudo adredemente preparado, com estratégia e com o uso de fortes grupos econômicos financiando. Não fossem o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral terem feito cumprir a Constituição, a tentativa de ruptura institucional teria logrado êxito.
Mas a democracia ainda está sob ataque. E, para manter o Estado democrático de direito, teremos que enquadrar os sicários que estão nas ruas fazendo o serviço sujo. Porém, não podemos nos esquecer do responsável pela estratégia golpista e que disseminou o ódio e alimentou a barbárie. Como em toda quadrilha, é necessário chegar ao mandante.
Socorrendo-nos do grande Augusto dos Anjos, no poema O Deus-Verme:
“Almoça a podridão das drupas agras, janta hidrópicos, rói vísceras magras e dos defuntos novos incha a mão… Ah! Para ele é que a carne podre fica, e no inventário da matéria rica cabe aos seus filhos a maior porção!”.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros. Publicado inicialmente no Poder360.
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